estadao.com.br | Nov 30th -0001
GENEBRA - Acervo com relatórios confidenciais, telegramas, cartas a
ministros e informes de reuniões que o Alto Comissariado da ONU para
Refugiados (Acnur) reuniu sobre ditaduras na América do Sul confirmam
que, pelo menos até 1979, cidadãos argentinos, uruguaios, paraguaios e
chilenos que buscaram refúgio em território brasileiro foram vigiados,
ameaçados, detidos e devolvidos aos seus países – com ajuda e
conhecimento das Forças Armadas do Brasil. É a primeira vez que a ONU
divulga o conteúdo desse acervo.
Os documentos mostram que só o serviço secreto uruguaio teria
conseguido, com a ajuda de Brasília e Buenos Aires, sequestrar e levar
de volta para as prisões de Montevidéu 110 refugiados políticos que
estavam no Brasil e na Argentina entre 1976 e 1979. "Assumimos que ainda
exista, como no passado, uma cooperação técnica entre as forças de
segurança de Uruguai, Argentina e Brasil", afirmava um telegrama secreto
da ONU de 25 de junho de 1979, guardado nos arquivos de Genebra.
As convenções da ONU consideram a devolução de pessoas ao seu país de
origem um crime contra a humanidade – já que representa, em muitos
casos, uma sentença de morte. Para representantes do Acnur hoje, a
comprovação das informações poderia exigir que pessoas envolvidas sejam
processadas pelo crime.
Levantadas pelos enviados da ONU à
região, as informações apontam uma cooperação bastante organizada entre
os regimes militares do Brasil, Argentina e Uruguai – tanto nas relações
políticas quanto no modo operacional – e que se estendeu por toda uma
década. Na época, a ONU montou uma operação para retirar do Cone Sul
mais de 18 mil pessoas ameaçadas por suas atividades políticas.
Até o fim dos anos 1960, a ONU admitia em documentos internos que
trabalhava com a perspectiva de que um refugiado de um país
latino-americano que cruzasse a fronteira não seria devolvido e que
teria proteção garantida. Essa percepção começou a mudar em 1969, quando
um telegrama de 12 de setembro, do escritório da ONU em Buenos Aires
para Genebra, alertava que "fontes da Igreja" apresentaram informações
segundo as quais brasileiros que haviam fugido começaram a ser
perseguidos na Argentina e no Uruguai. O escritório sugeria que a ONU
enviasse à região uma missão para dialogar com os governos e entender o
que estava ocorrendo.
"O problema de asilo para
latino-americanos fugindo de seus países por questões políticas está se
tornando mais difícil de lidar que no passado, diante da vontade cada
vez menor de certos governos latino-americanos de dar asilo", dizia o
telegrama.
Sequestradores. Meses depois, a cooperação já era
realidade. Em telegrama de 14 de abril de 1970, o representante do Acnur
em Bogotá alertava para uma coordenação entre as diplomacias da região
contra os militantes de oposição, principalmente diante dos sequestros
políticos que aumentavam. "Recentes sequestros políticos no Brasil, na
Argentina e na Guatemala e o trágico assassinato do embaixador Von
Spreta vão provavelmente resultar em políticas muito mais restritivas de
asilo para aqueles que eventualmente possam ser responsáveis por tais
crimes", dizia. Naquele ano, grupos sequestraram embaixadores
trocando-os por presos políticos.
Segundo o telegrama, um plano
estava sendo costurado entre diplomatas para fechar o cerco contra
sequestradores e impedir que pudessem fazer a troca de embaixadores por
militantes presos. Uma das propostas era um acordo para considerar
"pessoas nas listas para trocas em um caso de sequestro como possíveis
cúmplices no sequestro" – ou seja, seriam também consideradas criminosas
e não poderiam ser trocadas.
"Todos os países assumirão a
obrigação de não dar asilo a qualquer pessoa na lista de candidatos para
serem trocados com sequestradores e dar extradição imediata se um deles
entrar em seus territórios", dizia o texto. O Acnur previa naquele
momento que México e Cuba rejeitariam fazer parte do acordo.
Num telegrama de 14 de fevereiro de 1978, a ONU alertava para a situação
de um militante argentino exilado no Brasil – identificado apenas como
Bevacqua –, detido na rua, em Porto Alegre, em uma verificação de
papéis. Horas depois da prisão, ele morreria. Informações obtidas pela
ONU com diplomatas americanos indicavam que a polícia queria evitar a
suspeita de assassinato. Duas autópsias teriam sido feitas, mostrando
que ele sofreu um "ataque cardíaco".
O Acnur não confiava na
informação. "Outras fontes confiáveis expressaram dúvidas sobre essa
versão (do ataque cardíaco), sugerindo que ele, um militante, possa ter
se envenenado para evitar revelar fatos sob tortura", apontava o
telegrama.
O Acnur dizia que a ação ocorre no momento em que
havia sinais de que o principal grupo de oposição argentino, os
Montoneros, tentava se reorganizar, usando o território brasileiro. Mas,
diante desse incidente, a ONU também via outro fenômeno: "A
inteligência militar argentina está ativa no Brasil".
"Um nome
que está sendo mencionado em particular é o de um oficial da Marinha,
conhecido como El Gato e que esteve em novembro no Uruguai, e que foi
visto no Brasil recentemente", informava a entidade.
Outra
seria Silvina Labayru, ex-militante dos Montoneros, responsável pelo
serviço de inteligência no grupo e que acabou passando para o lado da
Junta Militar. "Ela agora responde à Marinha argentina. Ela foi vista no
Brasil."
Em 1.º de dezembro de 1978, um telegrama urgente do
escritório da ONU no Rio para Genebra alertava sobre o sequestro, em
Porto Alegre, dos uruguaios Universindo Diaz e Lilian Celiberti e de
dois filhos desta. Um relatório confidencial mostraria que os menores
acabaram sendo levados de carro para o Uruguai, enquanto Lilian e
Universindo seguiram para São Paulo – onde foram colocados em um avião
que voou para Montevidéu.
Dias depois, o exército uruguaio
publicaria um comunicado de imprensa dizendo que o casal fora preso
depois de "cruzar ilegalmente a fronteira, com falsos documentos e
levando literatura subversiva". Um terceiro comunicado sustentava que
eles estavam traficando armas.
Emergência. Alarmada pela
situação, a ONU pediu uma reunião de emergência com o Itamaraty.
Recebidos pelo embaixador Luis Lindberg Sette, diretor do Departamento
de Organizações Internacionais, os representantes da ONU apenas
escutaram da diplomacia que o Brasil "lamentava" o incidente.
Meses depois, em outro telegrama, a ONU confirmava que os homens que
invadiram o apartamento dos opositores uruguaios levaram 45 armas
"reservada às forças brasileiras" e que o Dops teria participado do
sequestro e envio dos quatro uruguaios para Montevidéu. Os regimes
transformariam o apartamento em uma arapuca. "Operações clandestinas da
inteligência uruguaia parecem continuar no Sul do Brasil para analisar e
neutralizar o movimento de muitos uruguaios vivendo no exílio",
indicava documento de junho de 1979.
Fonte Paulo Abrão
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