Emilio Gonzalez
Historiador e professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR – Campo Mourão
“Eu não acredito em contos de fada.
Resistência à prisão, chuvas de balas:
eu não acredito em contos de
farda!”
(rap
“Contos de Farda”, Mano Zeu)
“Todo camburão tem um pouco de navio
negreiro”
(O
Rappa)
Começo este texto com uma piadinha que ouvi, há
alguns anos atrás, na época da faculdade: uma competição internacional reuniu
corporações policiais do mundo todo. O objetivo era que cada uma delas
demonstrasse sua capacidade e efetividade na elucidação de casos. Ao início de
cada prova, um coelho era solto num bosque, e os policiais, lançando mão de
suas estratégias de investigação e ação, deveriam localizá-lo no menor tempo
possível. Primeiro foi a SWAT, que valendo-se de técnicas de resistência,
atravessaram toda a mata fechada, córregos e pântanos, e em 3 horas e meia
localizaram, encurralaram e trouxeram o coelho. Em seguida, foi a CIA, que
valendo-se de moderna tecnologia de escuta e localização de corpos por satélites
e instrumentos de precisão, localizaram, apreenderam e trouxeram o bichinho em
menos de 3 horas. Por fim, a polícia brasileira adentrou a mata, lá
permanecendo mais de 12 horas. Saiu de lá carregando um porquinho todo
arrebentado e ensanguentado, que grunhia de dor e gritava: “Eu confesso, eu sou
um coelho, eu sou um coelho!”
***
Em agosto do ano passado, em
Curitiba, a polícia militar paranaense adentrou uma comunidade (favela) para
prender um suposto assaltante. Logo encontrou o que queria: Um jovem negro e
pobre que, pelos estereótipos (sociais, raciais), serviria muito bem para
elucidar o caso. Tratava-se de Ismael, de 19 anos, evangélico e servente de
pedreiro, que teve o infeliz encontro com a PM paranaense. Segue o relato:
“Ismael conta que às 17 horas do último sábado recebeu um telefonema de um
amigo convidando-o para sair. Ele havia acabado de chegar em casa após o fim da
jornada de trabalho. De banho tomado, montou na bicicleta e foi em direção ao
ponto de encontro, na casa de um deles. Após pedalar por algumas quadras, foi
avistado por uma viatura da PM que participa da Unidade do Paraná Seguro (UPS).
Segundo ele, o veículo fez a volta e bloqueou a passagem. ‘Passou por nós, azar
o seu. Cadê a arma?’, perguntou um dos policiais saindo da viatura. Ismael
disse que não tinha qualquer arma. Outro policial o derrubou da bicicleta e,
com o servente no chão, apertou-lhe a garganta. Outro deu um chute nas costelas
e perguntou mais uma vez sobre uma arma. Ismael respondeu pedindo para que os
policiais o acompanhassem até em casa, onde poderia apresentar documentos. Foi
então colocado no camburão. Segundo ele, xingamentos racistas começaram a
pipocar, e se tornaram a forma-padrão de tratamento até o fim do cativeiro. O
rapaz demonstrou preocupação com a bicicleta, que permanecia tombada na rua.
‘Tua bike já era. Tu tá preso’, comunicou um policial. Dez minutos depois, a
viatura chegou à casa de Ismael. (...) os policiais entraram na casa e
começaram a vasculhar os cômodos, abrindo armários e jogando objetos no chão.
Disseram que estavam procurando armas. ‘Temos um flagrante. Ele confessou que
fez um assalto e a vítima já o reconheceu’, disse um PM. Enquanto isso, Ismael
permanecia trancado na viatura estacionada do outro lado da rua. Ninguém podia
vê-lo. Celso perguntou pelo funcionário. Os policiais foram até o camburão e
retiraram o rapaz. Levaram-no até o quintal, mas não deixaram ninguém tocá-lo
ou conversar com ele. (...) Após a busca no imóvel, que se revelou infrutífera,
a patrulha foi embora levando Ismael. Os donos da casa perguntaram o que seria
feito do garoto. Os policiais informaram que ele estava preso, mas não
revelaram para qual delegacia seria levado. (...) O jovem, entretanto,
não foi levado a uma delegacia. A primeira parada foi em um descampado. O servente diz ter identificado cinco
policiais, que se alternaram distribuindo chutes, socos e estrangulamento. ‘Se
você contar onde é a boca, a gente te solta’, teria dito um deles. (...) foi
mais uma vez trancado no carro. Ele lembra que ficou um bom período na viatura
parada, dentro do porta-malas, como se os policiais tivessem retornado ao
posto. A próxima parada foi em uma construção pequena, com duas camas, três
armários e um computador. Ismael supõe que se trata de um posto policial. Ali,
segundo ele, voltou a ser agredido. Alguns rostos eram novos. Também foi
submetido a choques no peito, nos genitais e na língua. ‘Vamos levar ele para a
desova’, teria dito um dos homens. Ismael começou a rezar. Eram 21 horas quando
Ismael da Conceição foi levado algemado até o Hospital Cajuru para tratar dos
ferimentos. ‘Não diga que você está sentindo dor’, ameaçou o homem que o
escoltava. Às 22h30, foi finalmente entregue ao 8º DP. (...) Na delegacia, os
PMs apresentaram uma arma de brinquedo como pertencente a Ismael. (...) (Fonte:
http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questao-racial/violencia-racial/19843-policiais-torturam-jovem-negro-com-choques-nos-genitais-e-na-lingua-oab-denuncia-barbarie)
***
Em 10 de outubro de 1997, na
cidade de Foz do Iguaçu, uma diligência da polícia civil, incluindo um
delegado, terminou com o assassinato de 4 jovens pobres moradores de uma área
conhecida como “favela Monsenhor
Guilherme”. Os policiais alegaram se tratar de um suposto confronto armado, mas
os quatro jovens mortos tinham marcas de execução. Adenilson Dias de Matos, 17
anos, foi morto com seis tiros, sendo três na cabeça, dois no tórax e um na
perna. Eli de Oliveira, 18, morreu com quatro disparos, dos quais três na
cabeça e um no braço esquerdo. Giovani Medina, 17, e Arnaldo Oziel Mongelos,
16, morreram também por tiros na cabeça. Nenhum policial foi ferido no
“confronto”. Os jovens eram evangélicos, e moravam nesta favela. Em 2002, o
juiz criminal Eduardo Casagrande Sarrão considerou as mortes homicídios
qualificados e ordenou que os réus fossem levados a júri popular. Desde então,
a papelada só fez aumentar devidos aos inúmeros recursos, agravos e outros
instrumentos jurídicos utilizados pela defesa para evitar o julgamento do grupo
de policiais da 6ª Subdivisão Policial (SDP). O processo, julgado na 1ª Vara
Criminal de Foz do Iguaçu, correu de forma lenta. A defesa dos policiais esgotou os recursos
nas instâncias superiores, e o processo voltou para a Comarca de Foz do Iguaçu,
onde permaneceu vários anos parado, devido ao ‘excesso de ações no juizado’. Em
2008, 11 anos depois da chacina, e mesmo a justiça já tendo decidido
favoravelmente aos familiares das vítimas, os policiais continuavam soltos, a
maioria dos quais na ativa. Um dos envolvidos na matança, por exemplo, é o
policial civil Luiz Carlos Durieux, que não apenas segue livre, como também até
recentemente (2009-2012) integrava a diretoria executiva do SINCLAPOL –
Sindicato das Classes Policiais Civis do Estado do Paraná. Já o delegado que ordenou
a chacina, Antonio Donizete Botelho, é atualmente o titular da 20.ª Subdivisão
Policial, na cidade de Toledo – Oeste do Paraná. Para assassinos com
distintivos, a justiça tarda, e sempre falha.
***
Na noite do dia 11 de agosto de
2011, dois ocupantes de uma motocicleta assassinaram a tiros a juíza Patrícia
Acioli, quando ela estacionava seu carro na garagem de casa, em Niterói, estado
do Rio de Janeiro. Algumas horas antes de morrer, a magistrada havia expedido
mandados de prisão contra PMs, que eram réus em processos conhecidos como
“Autos de Resistência” – quando há enfrentamento armado entre policiais e
bandidos, resultando em mortes. A juíza investigava grupos de extermínio
ligados a milícias (grupos criminosos com ramificações políticas e nas forças
policiais) que atuam na Baixada Fluminense. Além de realizar homicídios, as
milícias também controlam esquemas de corrupção que vão desde a compra de
políticos (partidos de aluguel, eleição de parlamentares e arrecadação de
dinheiro para campanhas políticas) a concessão de serviços clandestinos (TV à
Cabo, internet, transporte público ilegal, comércio local, etc), além de armas
e tráfico de drogas. Hoje, sabe-se que
muitos destes “Autos de Resistência” foram forjados para encobrir o assassinato
sistemático de testemunhas, “traidores” do grupo e até membros de facções
rivais que disputam o mesmo território do crime. A juíza Patrícia Acioli
percebeu inconsistências nestes “Autos de Resistência” e começou a desvendar a
ampla rede de corrupção e violência incrustada nas corporações policiais
brasileiras. Sua descoberta custou sua vida. Não foi a primeira vítima. E não
será a última.
***
A última página deste sangrento dossiê da violência policial teve lugar
aqui no Paraná. Ganhou destaque a selvagem atuação das forças policiais na
elucidação do crime de assassinato e suposto estupro da menina Tayná Adriane da
Silva, de 14 anos, ocorrido na região metropolitana de Curitiba no final do mês
passado. Infelizmente, não foi uma ação isolada de “maus policiais”, como
sugeriu o Secretário de Segurança Pública do Estado do Paraná, Cid Vasques.
Também não era apenas contra a chamada “banda podre” que a juíza Patrícia
Acioli lutava no momento de sua morte. Isso porque apesar de nem todo policial
ser corrupto, violento e assassino, o fato é que a violência e a selvageria já
se institucionalizou – e é moralmente aceita - como parte cotidiana das ações
policiais, especialmente quando se trata de reprimir pobres, negros e
desdentados que vivem nas periferias. Há muito tempo, os movimentos sociais,
coletivos culturais e entidades de Direitos Humanos vêm denunciando a violência
que já se naturalizou nestas áreas, onde a polícia adentra barracos sem
mandato, sequestra moradores e pratica o terrorismo físico e psicológico,
tortura, executa e forja confissões e documentos para produzir a “verdade” que
lhe convém. As torturas, os assassinatos a sangue frio, as prisões arbitrárias,
a intimidação, os espancamentos e as extorsões já se tornaram parte rotineira nos
porões das delegacias, batalhões de polícia e nas vielas das periferias pobres
brasileiras. O médico Dráuzio Varela, em seu livro “Estação Carandiru”, recupera a fala de um
agente de segurança (carcereiro) que lhe dizia que ninguém faz concurso para
bater em presos. Por trás de cada policial e agente da lei, há uma família, uma
história de vida simples, amigos, filhos, valores, dificuldades... Mas o fetiche da farda e do distintivo
transforma muitos destes pais de famílias em assassinos e torturadores. Quem
não se lembra do policial conhecido como “Rambo” (apelido do PM Otávio Lourenço
Gambra), um dos protagonistas do massacre na Favela da Naval, em Diadema, na
grande São Paulo? Em 1997, Rambo e seus colegas de farda foram filmados durante
vários dias promovendo extorsões, cobrando pedágio de supostos criminosos,
humilhando e espancando trabalhadores, e executando a sangue frio pessoas,
enquanto riam. Sem a farda, Otávio Lourenço era apenas um pai de família,
casado, bom marido e músico de uma igreja evangélica. Um cidadão comum. Um
homem “de bem”, no dizer do discurso moralista. A farda transformava o pai de
família evangélico em um assassino frio e bandido de distintivo.
Certamente não foi o único. Por isso, a
questão não se resolve simplesmente separando os “maus policiais” dos “bons
policiais”, porque, a rigor, todo policial fardado e/ou com distintivo é
potencialmente um assassino, um torturador, um falsificador de documentos
(B.Os, confissões forjadas, alteração de cena de crimes, etc) que, no limite,
não irá pensar duas vezes para forjar “Autos de Resistência”, a fim de livrar a
si e a seus companheiros de processos por homicídios, extorsões e torturas.
Neste caso, não vejo a diferença entre estes agentes da lei e os criminosos
comuns, exceto pela farda e pelo distintivo. A sociedade insiste em acreditar
que os crimes cometidos pelos “agentes da lei” são justificáveis porque
garantem a paz e a justiça. Na favela, onde as balas nunca foram de borracha,
“paz” e “justiça” são duas utopias que jamais se concretizaram. Ali, como as
UPPs cariocas vieram confirmar, “paz” sem voz não é paz; é medo.
***
A cultura da violência fez triunfar a ideia de que, sem a força bruta,
não há crime solucionado. Em nome da solução de um crime, outros tantos passam
a ser praticados e justificados. As vítimas são sempre as mesmas. A violência
física e psicológica, a intimidação, a tortura, a privação e o terrorismo já
estão institucionalizadas em nossas forças de repressão, e nos porões das
delegacias, nas sessões de interrogatórios e nos presídios, onde a lei
simplesmente não existe, e a vida e integridade física do detido torna-se
dependente do humor – e da obstinação cega – de delegados, policiais e
investigadores, que preferem o atalho da selvagem tortura ao trabalhoso
processo de investigação científica e racional. O caso dos 4 trabalhadores do
parque de diversões detidos e torturados no processo da menina Tayná,
infelizmente, não é uma triste exceção; é a própria regra. Nas últimas semanas,
a classe média brasileira descobriu o amargo gosto das bombas de efeito moral,
dos sprays de pimenta e das doloridas balas de borracha, e se revoltou. Mas
enquanto a polícia dispersava com balas de borracha, jatos d’água e spray de
pimenta os manifestantes que, diante das câmeras de TV, se aglomeravam no
centro do Rio de Janeiro, o BOPE, sem cobertura midiática alguma, entrou na
Favela da Maré e matou 8 moradores, indistintamente. Ali, as balas eram de
verdade. Nos Boletins de Ocorrência e nas alegações policiais, a palavra mágica
que há séculos, desde a época dos quilombos, justifica o extermínio e a matança
da população pobre e negra pelas forças de repressão: “confronto”. Patrícia
Acioli sabia da leviandade deste argumento. E apesar de sua morte, os “Autos de
Resistência” continuam sendo forjados, à revelia da classe média que se diverte
nas baladas noturnas, enquanto na periferia a polícia arrebenta portas de
barracos sem mandato, e coloca armas na cabeça de trabalhadores, crianças e
mulheres, espanca idosos, estupra e humilha moças e assassina jovens. Na calada
da noite ou a plena luz do dia, barracos e vielas das periferias são
verdadeiras fábricas de depoimentos e confissões forçadas, onde o Estado e as
elites despejam todo seu ódio, e cria os “bodes expiatórios” que justificam as
anomalias e erros de um sistema social e econômico desigual e injusto. É ali,
nessa selva social, que porcos viram coelhos, e homens de farda viram porcos.
_____________________________
* O autor é historiador e professor da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR – Campo Mourão
Nenhum comentário:
Postar um comentário