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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Encontro com Apolonio


Umberto Trigueiros

Conheci Apolônio de Carvalho, aliás, o Camarada Lima, no começo de 1964, uns dois meses antes do Golpe Militar. Fui apresentado por Aluízio Palmar (André) que compunha a direção da Seção Juvenil Estadual do Partido Comunista no antigo Estado do Rio. Tinha apenas dezesseis anos e tive a honra e o orgulho, que carrego comigo por toda a minha vida, de ter sido recrutado por ambos para o Partido Comunista.
Não sabia, na época, de quem se tratava, na verdade, aquele Senhor, o Camarada Lima. Somente anos mais tarde, fui conhecer a sua extraordinária biografia. Mas, já nos primeiros tempos em que travamos conhecimento, fiquei cativado pela sua capacidade de convencimento, pelo seu conhecimento cultural e político, pela sua dedicação ao Partido, aliados a um enorme interesse pelos problemas daqueles garotos, uma grande ternura, muita paciência e uma enorme disciplina. Eu era, então, um rapazinho de dezesseis anos, cheio de sonhos e certezas, mas, ao mesmo tempo, com graves problemas de depressão. Lima percebeu isso e teve a sensibilidade, apesar de todas as suas responsabilidades e riscos (já em plena ditadura), de se preocupar comigo e me ajudar a superar esses problemas.

Ele era assim: um quadro extremamente disciplinado e fiel ao Partido, mas muito aberto ao relacionamento humano; extremamente sensível aos problemas de todos os companheiros, dos simpatizantes e das pessoas, em geral, que por alguma razão faziam parte das suas relações. Além do mais, era dotado de um fantástico senso de humor. A gente brincava com o Lima, dizendo que ele cumpria tarefa do Partido, fazendo política de relações públicas, o que chamávamos, na ocasião, de ampliação, pois ele se interessava pelo cachorro do dono da casa em que fazíamos uma reunião, perguntava pela sogra, conversava com a empregada, dava palpite na cozinha, etc.
Certa vez, era noitinha, estávamos Lima, Aluízio Palmar e eu, em Niterói, fazendo um ponto (encontro) em frente ao Instituto Mazine Bueno, da Faculdade de Medicina. Eles queriam me batizar com um nome de guerra e mandaram-me escolher. Eu estava de costas para o busto do patrono do tal instituto e o Aluísio de frente para o monumento. Ele aproveitou a oportunidade e tascou: “seu nome vai ser Mazine”. Lima completou, no ato, que se tratava do nome de um grande revolucionário. Saí dali todo orgulhoso e só tempos depois vim saber da verdade. Quando fui cobrar do Lima, ele já tinha para me apresentar a biografia completa de Mazine, um grande líder e ativista dos carbonários italianos. Só pra não deixar passar, poucos anos mais tarde, o busto do tal Mazine Bueno foi expropriado e derretido para fazer finanças para a organização (o antigo MR-8 de Niterói).
Nunca vou-me esquecer de uma frase sua para me inculcar ânimo, otimismo, autoconfiança, certa vez em que em cobríamos um ponto e eu andava muito deprimido e triste.
- Rapaz, você é um jovem cheio de energia e sonhos e agora tem uma responsabilidade muito maior com a vida, com a história, você é o Partido, o Partido anda com os seus pés, você fala pelo Partido.
Saí dali com o moral lá em cima, disposto a tudo, a qualquer desafio. Ele estava sempre aberto para debater qualquer coisa, fossem posições políticas, um romance, o capítulo de um livro, temas filosóficos, culturais, pessoais.
Na época da luta interna do Partido, às vésperas do VI Congresso, Apolonio estava no Comitê Estadual do Estado do Rio e integrava um das alas da oposição de esquerda, a chamada Corrente, junto com Mário Alves, Gorender e outros dirigentes. Eles achavam que ainda havia espaço para brigar dentro do Partido. Por outro lado, a juventude do Partido em Niterói estava ligada ao grupo chamado Dissidência, preparava-se para romper e, logo depois, iniciar o caminho da luta armada. Recordo-me das discussões muito duras que tivemos com Lima. Ele ainda defendia a permanência no Partido e ficou muito triste e chocado com a nossa saída. Lembro-me dele, quando aconselhava:
- Sair do Partido? Não façam isso! O Partido é a nossa vida, não há perspectiva fora do Partido...
Pouco tempo depois, a própria Corrente saía do Partido, de forma mais organizada que nós, e criava o PCBR. Mais tarde, vieram a clandestinidade, a prisão, o exílio e passei um longo tempo sem ver Apolonio. Fomos rever-nos, novamente, em Paris. Ele foi encontrar-me junto com o René Louis, seu filho, que tinha sido banido junto comigo para o Chile, em Saint Denis, na casa do Átila – o inesquecível companheiro Valneri Antunes, morto em um trágico acidente de carro no Rio Grande do Sul, em 1986, quando era vereador em Porto Alegre e candidato a deputado estadual. Foi maravilhoso aquele encontro, na França. Alguns dias depois, convidou-me junto com minha companheira para um passeio no Sena e, em seguida, para um Calvados, em um “boteco” bem francês.
Em 1979, nos encontramos no Congresso Internacional pela Anistia no Brasil, em Roma. Consegui tirar uma foto dele quando conversava com Diógenes de Arruda Câmara e José Maria Crispim, um registro histórico que guardo comigo.
No Brasil, estive com Apolônio algumas vezes apenas, não tantas como gostaria. Mas ele faz parte do melhor dos meus sonhos, da minha vida. Ele faz parte da história da luta do povo brasileiro por sua verdadeira independência e pelo socialismo. Ele é um herói dessa luta.



Extraído do livro: 68 a geração que queria mudar o mundo: relatos - organizado por Eliete Ferrer e publicado pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, 2011, página 292.


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