CÁLICE QUEBRADO
Do livro O Mel e o
Sangue, de Juliana Machado
TCC premiado no curso
de jornalismo do Mackenzie
Categoria "Reportagem"
– O MEL E O SANGUE – HUMANIZACAO E AMPLIAÇÃO DO JORNALISMO NA COBERTURA SOBRE
DIREITOS HUMANOS.Aluna: JULIANA MACHADO
Como é difícil acordar
calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito
desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, pra a qualquer momento
Ver emergir o
monstro da lagoa
Pai! Afasta de mim esse cálice”
------- Trecho da música “Cálice”, de Chico Buarque.
Na manhã de um primeiro de março, o ventilador de parede em
uma sala de catequese de uma igreja tenta aliviar o calor. Aluízio Ferreira Palmar, de 69
anos, jornalista, sentado em uma cadeira laranja desarranjada das demais na
sala começa as duas horas de diálogo sobre seu passado: ex-militante comunista,
ex-líder estadual do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em Niterói, no Rio de
Janeiro, na década de 60, torturado e expulso do país pela ditadura militar
brasileira, instalada no ano de 1964 por meio de um golpe e encerrada em 1985.
Estamos na cidade de Foz do Iguaçu, limite com Argentina e
Paraguai, não por menos o local que ele escolheu para viver após se instalar
sucessivas vezes em países diferentes da América do Sul, fugindo da perseguição
política. A cidade natal, porém, é a “velha província”, como ele mesmo diz, de
São Fidélis, estado do Rio de Janeiro. Conhecendo, andando, ouvindo, lendo,
vendo e vivendo, aos poucos, “ainda muito criança”, segundo sua descrição, foi
se envolvendo com muitas coisas ao mesmo tempo. Os irmãos eram “carolas”,
frequentavam a igreja, a missa, faziam
comunhão. Ele, por outro lado, encerrou o ginásio tendo como amigos os
operários, com suas conversas sobre Brasil e sobre o socialismo.
Mudou-se com a família para São Gonçalo, também no Rio de Janeiro, e também lá se aproximou
de grupos de marinheiros e pescadores. Aos poucos, o lugar foi talhando a
percepção de Aluízio. “Aquele menino que saiu do interior cheio de dúvidas,
contestando de forma aleatória e inconsequente, começa a conhecer rumos com os
marítimos e metalúrgicos de São Gonçalo, dos estaleiros. Por que existia tanta
desigualdade? No interior eu contestava, mas não entendia e ali eu entendi os
mecanismos econômicos, a história, o feudalismo, a revolução burguesa. Todo um
processo histórico eu vim conhecendo, até que eu entro em contato com uma coisa
que é o materialismo histórico”.
Não por menos, o impacto o mudou como pessoa. Aluízio, dali
para frente, faria parte de uma corrente que veria a história de forma
marxista. Ele passaria a enxergar o mundo a partir de elementos concretos e
factíveis nas sociedades, ou seja, por meio de seu modo de produção, em cima do
qual se constroem as estruturas políticas e a forma de pensar dos seres humanos
e suas sociedades.
1961. O então presidente do Brasil, Jânio Quadros, renuncia
e seu vice, João Goulart, o Jango, no momento, estava em visita à China.
Seguindo a Constituição, o Congresso deu então a posse temporária ao presidente
da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli.
Nessa época, Aluízio ainda estava em São Gonçalo. Fazia o
colegial, que é como chamavam o Ensino Médio na época, e vendia sorvete no
armazém de secos e molhados do pai. Fazia questão de acompanhar toda a
movimentação política.
A instabilidade já era grande à época. Os militares
aproveitaram-se da ausência do vice-presidente para elaborar
um documento em que
se opunham à posse de Jango. Era um
comunista, retornava da República Popular da China, que é comunista, tinha vínculos fortes com o
comunismo, diziam. Manifestações em favor da posse do presidente afloraram. Leonel
Brizola, no Rio Grande do Sul, centralizava as emissoras de rádio com
propaganda pró-Jango.
O risco de guerra civil crescia. Com o Congresso e as forças
armadas divididos e com as manifestações populares, senadores e deputados
propuseram a criação do parlamentarismo em substituição ao presidencialismo. A
ideia era garantir que Jango assumisse o cargo, mas com poderes presidenciais
limitados, de modo que ambos os grupos, militares e sociedade, pudessem acalmar
os ânimos. A medida foi aceita. Ela teria de ser votada em plebiscito – o que
significa que o parlamentarismo cairia, já que amplamente o presidencialismo
era o preferido. Os militares tinham
como esperança, porém, o adiamento da votação até 1965, quando o mandato de
Jango se encerraria, de modo que o sistema parlamentarista se man- tivesse. Em
1963, a votação ocorreu e dez milhões de pessoas optaram pelo retorno ao
presidencialismo após pouco mais de um ano em regime parlamentarista.
Jango tinha uma concepção de esquerda política mais forte,
agora com novo fôlego após a retomada plena como presidente. Com um estilo de
governo populista que durou até o golpe em 1964, ele era aberto às organizações
sociais e aos grupos de esquerda, trabalhadores, organizações
populares e estudantes. Sindicatos, Comando Geral dos Trabalhadores
(CGT), União Nacional dos Estudantes (UNE), Ligas Camponesas, todos tinham
maior aproximação com o governo.
Classes conservadoras na sociedade, destacadamente os
militares, alertavam-se com essas preferências. O medo de um “Brasil comunista”
tomava forma dentro de setores como o empresariado brasileiro, classe média e
Igreja Católica. No governo, a força deste pensamento era fomentada entre os
partidos de oposição, entre eles a União Democrática Nacional (UDN).
Em 13 de março de 1964, Jango faz um comício no Rio de
Janeiro em que anuncia sua defesa pelas reformas de base, que previam mudanças
fiscais, eleitorais, sociais, agrárias e educa- cionais no país. A
reestruturação passaria a ser feita por meio de decretos e dois foram
assinados, de modo simbólico, um para a nacionalização das refinarias de
petróleo e outro sobre a desapropriação de terras marginais a rodovias e
improdutivas.
A reação veio logo em seguida. No dia 19 do mesmo mês,
setores conservadores se uniram na Marcha da Família com Deus pela Liberdade no
centro de São Paulo para declarar sua objeção às ideias de Jango. Entre os
grupos, cresciam as acusações de que a intenção do presidente era criar uma
“re- pública sindical” ou um “golpe
comunista”.
Entre 25 e 27 de março, no Rio de Janeiro, marinheiros
protestaram contra medidas de ordem disciplinar, definidas pelo Ministério da
Marinha contra eles. Jango, apoiando os marinheiros, discursou no mesmo mês e
ano contra oficiais das forças armadas. O golpe, então em curso, ganha força.
Na noite do dia 31 de março de 1964, tropas iniciam seu
deslocamento em Minas Gerais rumo ao Rio. Jango estava lá. No dia primeiro de
abril, consuma-se o golpe. Jango retorna a Brasília e, depois, ao Rio Grande do
Sul. Lá, encontra-se com Brizola, que lhe sugere resistir tal como haviam feito
em 1961. Por medo da guerra civil e das consequências de enfrentar classe
média, latifundiários, empresários, Igreja Católica e partidos conservadores,
entre eles a UDN, Jango abandona o país e se exila no Uruguai.
Aluízio conta que esperava ele mesmo morrer no exílio, como
muitos de seus companheiros – e como Jango. “Eu que- ria só que, se fosse para
acontecer isso, se fosse para morrer, em qualquer lugar, que fosse por
velhice”.
conforme Aluízio conta, não parece, mas os eventos de sua
vida ligados à luta contra a ditadura aconteceram de maneira ligeira, um atrás
do outro. Ainda no ginásio, ele começou a se aproximar do movimento estudantil,
segundo ele pelo caminho
inverso: das
conversas com o operariado, chegou consciente sobre as pautas do movimento
estudantil quando passou a fazer parte dele ao invés de obter, lá dentro, as
informações que considerava importantes. Entrou para a União dos Estudantes
Secundaristas de Niterói – já era o ano de 1961.
Foi quando ele se deparou com o “Partidão”: o Partido
Comunista Brasileiro (PCB). “Eles vinham com umas ideias assim: o Brasil é um
país atrasado, então existe em alguns cantões relações de trabalho que são
relações feudais e é preciso superar essa relação de exploração do ser humano
através da servidão. O país é um país dependente, dependente da economia, é
preciso fortalecer a economia nacional para o país ser um país mais
independente. É preciso criar uma ideologia nacional, uma cultura. Daí eu
pensei que era isso que eu queria. Essa é a coisa que eu queria”.
Ali dentro, Aluízio quis aprender. Ideias, cartilhas, pro-
postas, discussões, reuniões, comícios, encontros, trabalhos, pesquisas,
conversas. Quando Jango finalmente conseguiu to- mar posse da presidência,
Aluízio logo tinha esperança de que “aquele presidente sensível faria algo para
avançar na luta por mais igualdade”.
Dali pra frente, ele não sabe dizer se foram eles – o PCB
– que não avançou ou se foram os militares que avançaram de-
mais, mas o fato é que, segundo Aluízio, não havia uma crença de que um golpe
se consumaria.
Ele narra o dia em que o general Olímpio Mourão Filho, em
Juiz de Fora, ordenou que tropas sob seu comando invadissem Guanabara, então
estado do Rio de Janeiro, o que antecipou o golpe militar em alguns dias. Era
1964. “Não sei o que deu naquele
general, ele pegou uns tanques, uns caminhões, fez um manifesto e saiu em
direção à Guanabara. Ele avançava com aquele treco dele – que era um treco, né?
O que era aquilo? Dois tanques, uns caminhões, uns soldados e ele num jipe.
Lacerda e todo mundo lá, soltando foguete, põe fogo na sede da UNE, manifesto,
não sei o quê. ‘Ah, não vai dar em nada’, me diziam”.
O raciocínio era
simples: em 1956, tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek. Deu em
nada. Depois, tentaram impedir a posse de Jango. Deu em nada. Dessa vez, claro,
daria em nada. “Isso é coisa que morre na praia. Todo mundo dizia isso, os
velhos do Partidão diziam. Eu era jovem, mas era já velho do Partidão. ‘Como é
que é?’, eu perguntava. ‘Não, fica tranquilo que não vai dar em nada’, respondiam”.
Só que, daquela vez, o “vai dar em nada” terminou em 21 anos
de ditadura.
Quando, em 1964, o golpe foi dado e o regime militar
instaurado, Aluízio decidiu sair de casa. A ideia era ir para Mi- nas Gerais,
para casa de tios, ficar escondido. Na cabeça, já maturavam ideias mais
radicais de combate à ditadura e, onde estava, Aluízio não via muita
perspectiva de se organizar nesse sentido. No interior do Rio de Janeiro, onde
passou para ir para Minas, parou na casa de uma outra tia. Disse que passaria
ali uma noite e iria embora no dia seguinte. Num gesto rápido de negação com as
mãos e com uma voz de desaprovação, ele imita a reação enérgica da mulher.
“Você vai embora agora, não quero comunista na minha casa, você vai embora ou
eu chamo a polícia”. Depois do susto, insistiu. Conseguiu convencê-la a ficar
um pequeno pedaço da noite e sair bem na
madrugada.
O episódio, para ele, era muito característico. Tinha
ali a representação da vitória de uma
direita menos tímida. Para Aluízio, uma direita extremamente tímida sugeria
coisas antes do Primeiro de Abril, mas não aparecia. Mesmo a Marcha Com Deus
pela Liberdade ele não via como algo imponente. “A gente achava assim, a
direita brasileira estava isolada, o processo avança dentro da legalidade. Se o
processo avança dentro da legalidade, se nós temos a maioria na Câmara e no
Senado, se nós temos os trabalhadores, se nós temos os estudantes, nós temos
tudo. Vamos avançar o processo, a direita não existe, ela é um tigre de papel”.
Mas, após o golpe, a situação tomou outra proporção. “A
sociedade parece que passou a se ver com um anticomunismo doentio. E começou no
interior e nas capitais um tal de entrega fulano, entrega sicrano... Se era
adversário político, quem tinha mais poder alegava: ‘Ó, aquele ali é
subversivo, ele é do Brizola’. E o cara era preso. Se houve pessoas
investigadas, entregues desse jeito, é porque pensavam que nem a minha tia.
Ela, que era minha tia”.
Aluízio saiu na madrugada seguinte, conforme combina- do.
Nunca mais voltou a encontrar aquela tia.
No ano de 1964, mesmo ano em que a ditadura teve início,
universitários que compunham o PCB, incluindo Aluízio, descontentes com a forma
como o comitê central do partido avaliou a condição política do país no momento
pré-golpe, criaram uma cisão no Rio de Janeiro, uma Dissidência Comunista
(DI-RJ). O grupo encontrou apoio em lugares como Paraná e Brasília e tentou sem
sucesso unir também outras regiões, como São Paulo, onde a dissidência se
alinhava ao grupo do revolucionário Carlos Marighela, e Minas Gerais, onde a
força era o Comando de Libertação
Nacional (Colina) e a Organização Revolucionária Marxista Política Operária
(Polop). Em 1967, o DI-RJ trocaria de nome para Movimento Revolucionário Oito
de Outubro (MR8), assim batizado em função do dia 8 de outubro daquele ano, em
que o líder revolucionário cubano Ernesto Che Guevara foi preso na Bolívia. Na
criação da DI-RJ, o líder do governo militar era o marechal Castello Branco.
Aluízio entrou na clandestinidade em 1967 e só saiu dela com
a Lei da Anistia de 1979. Um ano antes de se tornar um clandestino, entrou na
faculdade de Ciências Sociais e saiu de- finitivamente da casa dos pais, embora
antes, com medo de ser encontrado, já
tivera adotado uma vida “sombria”. “Eu precisava me manter. Até 1965, o partido
[PCB] me ajudava, mas depois disso eu comecei a trabalhar na zona portuária do
Rio de Janeiro, numa empresa transportadora, para me manter. Só uma pessoa
sabia qual era meu local de trabalho, ninguém mais sabia, ninguém sabia onde eu
morava, quem eu era”.
O golpe de 64 não havia matado de todo a esperança de uma
retomada democrática e, ainda nos anos seguintes, ele recorda que conseguia se
organizar com outros membros do partido para a realização de protestos nas ruas
do Rio de Janeiro. Com o tempo, porém, ele lembra que suas expectativas
começaram a padecer. “Eu sei que as coisas foram avançando de tal forma, o
processo era um processo tão rápido, tão rápido, o sistema foi fechando cada
vez mais e aquela expectativa de que haveria uma abertura foi morrendo, a
repressão foi se montando e atingindo todos nós. Os meios que nós tínhamos de
enfrentamento e manifestação por meio pacífico eram extrema- mente reprimidos”.
Aluízio chega a citar os comícios-relâmpago organizados pelos grupos de
resistência e os momentos em que os policiais chegavam. O corre-corre pra
escapar da prisão tinha seu preço: quem caía, era preso, com o medo vindo
depois, de dentro dos cárceres.
O PCB foi criado no ano de 1922 e, com o início do período
ditatorial, foi colocado na ilegalidade, tendo retornado ao reconhecimento
enquanto partido político apenas após a
Lei da Anistia, em 1979. Aluízio,
que havia sido líder estadual do partido no Rio de Janeiro antes do golpe,
ficou então com a missão de reorganizar
e reestruturar o PCB no estado. O constante deslocamento para o interior e
retorno à Niterói eram cruciais: os governistas de esquerda já haviam sido
retirados do poder, os militares moderados
e liberais também, líderes do PCB haviam sido perseguidos, capturados, mais
adiante torturados e mortos. Aluízio não podia se arriscar. “Eu conheci uma vez
um rapaz, ele era do PTB [Partido Trabalhista Brasileiro]. Ele não concordava
muito comigo, nossas ideias não batiam muito, mas ele foi muito solidário. Ele
me levou para o interior do estado do Rio e depois, escondido num táxi, atrás
de um baú, ele me levou para um sítio. Lá, ele me deu um radinho, que era para
eu saber o que estava acontecendo. Quando eu vi que estava mais tranquilo,
voltei novamente para Niterói”.
Em dezembro de 1967, membros do PCB convocaram o VI
Congresso do partido. Aluízio estava lá, onde a decisão de negar quaisquer
propostas que não estivessem ligadas a ações políticas foram ratificadas. As
dissidências, que já haviam se formado depois do descontentamento com o PCB no
pré-golpe, com a re- solução, seguiram por rumos ideológicos diferentes sobre o
modo de combater o regime militar. “Nós fizemos uma avaliação, uma reflexão,
sobre o que tinha dado errado para [o golpe] acontecer. Avaliamos mal a
conjuntura? O que fizemos errado? E na nossa avaliação a culpa foi do comitê
central, que estava dentro do governo do Jango, avaliou mal e passou para nós
uma visão errada da correlação de forças”. A ideia de que o PCB possuía um dispositivo
militar legalista e no qual era possível confiar, a ideia de que as forças eram
imensas, de que não havia perigo de golpe e que, se houvesse, eles tinham
estrutura e condições de resistir, eram falsas. Aluízio e outros universitários
julgaram que o modo de combate deveria realmente ser outro. “A tática não era a
que a direção propunha, de fortalecimento da oposição parlamentar para o
retorno da normalidade democrática e espera das coisas acontecerem, sem
provocar. A nossa era diferente, era de criação de frentes de combate à
ditadura, pelo enfrentamento”.
Aluízio, com uma fala pausada, cita de novo os tempos de truculência cada vez mais fortes,
onde se tornava cada vez mais difícil realizar manifestações pacíficas e
passeatas nas ruas. Ainda no governo de Castello Branco, a repressão tomava,
aos poucos, tamanha proporção que ele e seus companheiros dissidentes não viam
outra saída senão “subir a serra” – adotar a luta armada de guerrilha contra a
ditadura.
Castello Branco deixou o governo em 1967. Após ele,
a ditadura tomaria nova forma na figura do marechal Artur da Costa e
Silva, que pertencia à ala linha-dura dos militares do regime. Entraria o ano
de 1968, início dos Anos de Chumbo, que se seguiria com o general Emílio
Garrastazu Médici até 1974.
Em meio a tantas
lembranças, Aluízio interrompe subitamente a narrativa. “Estou indo bem?”.
Aceno com a cabeça positivamente e peço que ele prossiga. Usando óculos, ainda
sentado, ele faz uma pausa, olhando pela janela da sala. Ou- vimos apenas o
ruído do ventilador e, lá fora, do vento. Pelo reflexo dos óculos dele, percebo
que ele observa o balanço das folhas de uma árvore próxima a nós. Faz sol e os
raios se projetam no chão da sala onde estamos através da janela de frestas,
formando um intervalo de listras escuras e claras, como se atravessassem uma
cela.
Aluízio estava decidido a seguir com a luta armada e, para
isso, iria para Foz do Iguaçu, no Paraná. Em São Paulo, contou o plano,
apontando para a região em um mapa, a dois amigos da dissidência paulista.
Ambos morreriam na ditadura. “Eu sei que fui meio leviano de contar a eles, mas
não sei, eu confiava neles. Não se falava disso assim, mas eu contei a eles.
Estávamos lá no Crusp [Conjunto Residencial da USP]. Eles olharam pra mim:
‘Paraná?’. Eu disse que ia sim. Daí, um deles me deu o contato de alguém em
Curitiba, que me deu o contato de alguém em Foz [do Iguaçu]. E então eu vim”.
De um depósito de farinha onde viveu logo que chegou ao Sul,
ele saiu para a casa de um paraguaio, o César, que também o ajudaria a recrutar
pessoas e fortalecer a luta na região. Conheceu a cunhada do amigo, namorou-a e
com ela se casou. Aluízio só teve uma esposa na vida, sua companheira até hoje,
que não seguiu seus passos contra a ditadura, mas que sabia e acompanhou tudo, desde o começo. Ela se
chama Eunice Almeida. O casal teve cinco filhos: em 1969, nasceu Florita; de-
pois, vieram Andrea, Alexandre, Ana Luzia e Janaína.
“Fazer uma guerrilha significa virar bicho selvagem”, disse
ele. “Ficamos um ano dentro do Parque Nacional, caminhando, caminhando,
caminhando, abrindo trilhas, acampando. Abastecimento vinha do Rio e de coisas
que compramos aqui na região, de
marujos e operários que ajudavam. Enquanto nós fazíamos isso, lá no estado do
Rio, os outros companheiros faziam expropriações. Com isso aí, foi possível ter
algum recurso, para comer um sanduba, um pastel com caldo de cana, um
polenguinho com pão. Era a vida nossa”.
Aluízio só saiu do mato para se casar – e não teve lua de mel.
Terminada a cerimônia, só no cartório, dormiu com a esposa e, na madrugada,
voltou para o mato. Ela, em seguida, voltou para o Rio de Janeiro, para ficar
na clandestinidade. Aluízio não queria que ela ficasse com ele ali. Era 1968.
Um ano depois, ele seria capturado.
Num dado momento, dentro do carro a caminho da igreja onde
faríamos a entrevista, Aluízio comenta a respeito de sua mobilização, quando já
estava anistiado, para encontrar os amigos desaparecidos. Em uma boa parte do
período pós-anistia, era isso que ele estava determinado a fazer. Ele me conta
a respeito do ano de 2005, quando foi credenciado pelo Ministério de Justiça para acessar arquivos da Polícia
Federal. E, a partir dali, procurou por alguns nomes: os irmãos Carvalho, que
eram Joel José e Daniel José, Vitor Carlos Ramos, Onofre Pinto, Enrique Ernesto
Ruggia e José Lavéchia.
Consultei os nomes em arquivos públicos. Daniel e José,
filhos de Ely José de Carvalho e Esther Campos de Carvalho, foram presos pela
Operação Bandeirante (Oban) no dia 5 de outubro de 1970, onde foram torturados.
Onofre, filho de Júlio Rosário e Maria Pinto Rosário, foi preso no dia 2 de
março de 1969 pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e banido do
país em setembro de 1969. Desapareceu no ano de 1974, mesmo ano em que Vitor e
Ernesto também haviam desaparecido, quando tentava retornar ao Brasil
clandestinamente.
Aluízio não sabia onde estavam, mas tinha certeza que não
estavam exilados e não estavam vivos. Por meio de uma multa de trânsito, chegou
a um dos nomes que teria sido responsável pelas mortes. A pessoa não quis falar
com ele, mas falou com outras – e Aluízio chegou a elas. Na chacina da Estrada
do Colono, que corta o Parque Nacional do Iguaçu, eles foram mortos. Atraídos
no ano de 1974 ao Brasil por uma ditadura já em processo de desaparelhamento,
sob o comando de Paulo Malhães e Teixeira Brandt, foram desarmados e executados
em um sítio, segundo o depoimento a que Aluízio havia chegado.
Decidiu escrever, com base naquelas informações, a sua contribuição à Comissão Especial para
mortos e desaparecidos políticos, criada sob a Lei 9140 e vinculada à
Secretaria Nacional de Direitos Humanos.
“Conforme escrevia, fazia uma catarse”, assume. E, aos
poucos, o relato foi perdendo o tom denunciativo burocrático e ganhando
contornos jornalísticos, migrando para o que tempos depois viria a ser o livro
de Aluízio: Onde foi que vocês enterraram os nossos mortos?
O livro abre com uma pergunta a que ele próprio não pôde
responder. Os corpos dos amigos buscados, cuja história agora ele sabia, foram
procurados durante escavações no local onde teriam sido executados e
abandonados, mas nem ossadas e nem pistas foram encontradas a partir dali.
No mesmo ano de 1968, “a área queimou”. Isso significava, em
outras palavras, que alguém sabia da existência do grupo revolucionário de
Aluízio, sabia o que faziam e o que queriam em Foz do Iguaçu. Mas outra grande
questão que surgiu entre eles na época é que a teoria do foco revolucionário no
campo, aquela em que, ganhando proporções, chegaria até a cidade, não daria
certo. Sentaram-se companheiros, conversaram, discutiram, avaliaram. E chegaram
à conclusão que era melhor parar por ali, tirar tudo, ir embora.
Aluízio, a essa altura, vivia com um amigo chamado Mauro
Fernandes, ex-bancário, que usava óculos de lente fundo de garrafa e que era
gago. Na casa em que viviam na época, o jornalista lembra dos muitos livros.
Mauro pegou o jipe, encostou e começaram a esvaziar tudo. “Livros, livros,
livros, um monte de livro para retirar... A gente vem fazer guerrilha e ao
invés de trazer armas, a gente traz livros. Guerrilha mais louca, né?”. Deu uma
risada. Pausou. Depois, voltou. “E muito papel, muito panfleto. Algumas armas e
mais livros. Uniformes e mais livros. E o jipe dele ficou cheio de coisa. Era
Sexta-Feira Santa, me lembro bem”.
Decidiram os dois passar na casa de um dos contatos que iria
ficar para trás e comer um peixe antes de seguir para Curitiba com o jipe sujo
de barro, mato e cheio de livros. Decidiram, mais ainda, passar em uma cidade
maior do entorno, Cascavel, para comprar mais peixe e um vinho.
Próximo da rodoviária, Mauro foi estacionar e bateu em outro
carro. O dono do carro chegou. Nervoso, com muita dificuldade para falar, Mauro
tentava se explicar. Desceu do carro, discutiu com o outro motorista. Foram
ambos atrás de alguém para fazer o orçamento e o serviço ali mesmo. Aluízio
desceu do jipe e ficou ao lado, angustiado. “Eu fiquei pensando: se eu fujo, o
jipe fica cheio de coisa e o Mauro chega e eu não estou aqui. É mais perigoso.
Eu acho que vou ficar”. E ficou.
A rodoviária estava lotada. O movimento era intenso.
Dali a pouco, Aluízio escuta um rapaz gritar: “É aquele ali,
é comunista!”.
Não deu tempo de entender exatamente de onde vinha o grito
ou de onde vinham os policiais. Foi preso ali mesmo e leva- do à delegacia.
Várias malas que estavam no jipe foram levadas também. Ao chegar, os policiais
começaram a abrir as malas e a jogar tudo o que tinha ali para fora. “Quando
eles começaram a abrir aquelas malas, eu tomei um susto. Eu sabia o que tinha
dentro da mala, mas me assustei porque estavam abrindo dentro da delegacia.
Manual de guerrilha, manual de não sei o quê, livro de Marx... Eu dei um pulo,
virei um gato, saí correndo feito louco da delegacia e me mandei. Corri
como corisco”.
Ele para, novamente, de súbito. “Corisco é raio, viu?”,
disse-me, apontando para minhas anotações.
1969. Aluízio teve o
azar de, fugindo, ser capturado no pátio de um comando da Polícia Militar.
Sabíamos ambos o que eu perguntaria após ele me contar que havia sido preso.
O sol sumiu por alguns minutos e então não havia sombras na
sala.
“Eu tenho 70 anos, eu fui preso em 1969. Faz quantos anos?
44 anos. É tempo pra danar, né? É muito tempo. Eu já vivi muito tempo. E sabe
que nesses 44 anos eu quase não falo. Eu nunca contei para os meus filhos,
nunca falei em casa, para os meus irmãos”.
Interrompe-se. Começa a contar a respeito de uma palestra
dada por ele uma vez. Ele diz que é comum nesses eventos que as pessoas o
provoquem para que diga o que ele passou dentro da prisão. Interrompe-se
novamente. Em segui- da, prossegue. “Eu passei tanto tempo no pau de arara do
Dops [Departamento de Ordem Política e Social] de Curitiba que eu não sei
quanto tempo foi que ocorreu todo aquilo. Eu era tirado do xadrez quase todas
as noites e os companheiros que viam eu saindo, quando viam, ficavam
apreensivos. Quando eu voltava, eu
voltava diferente. Cada vez que eu saía, eu voltava diferente”. Insisto no que
seja “voltar diferente”. Percebo que ele vai continuar, mas não vai me
responder. “Sabe, eu deixo assim: será que eu tenho que passar por tudo de novo
contando? Não, eu prefiro não falar os detalhes, mas foi o ano de 69 todo. Esse
suplício”.
Um dia, deram-lhe um radinho na prisão de Ilha Grande, que
era onde estava. Por ali, Aluízio ficou sabendo do sequestro do embaixador
suíço Giovanni Bucher. Era 1970. Uma lista che- gou até ele e então ele sabia
que tinha, ali, uma chance de sair. A lista eram os nomes dos guerrilheiros que
a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada pelo ex-capitão do Exér-
cito e então revolucionário Carlos Lamarca, exigia que fossem libertados em troca da libertação do
embaixador suíço, seques- trado por eles. “Quando chega o helicóptero, me levam
lá para cima, mandam eu tirar a roupa e tiram foto de frente, costa, lado,
outro lado, de cima pra baixo. Eu ficava pensando: ‘estou saindo, parece’. Aí
eles diziam que não era para eu sair, que eu tinha a opção de ficar, que iam
aliviar minha situação, que eu ia pegar uns aninhos, que eu ia sair de boa e
que, se eu aceitasse sair daquele jeito, eu poderia morrer, que eles podia
abater o helicóptero... Eu disse: ‘não, eu quero sair agora, me dá um papel aí
que eu assino’. Então, fiz uma declaração que eu queria sair”.
Sair significava não apenas sair da prisão. Aluízio saía de
Ilha Grande ou para a morte – caso algo acontecesse ao embaixador, ele sabia
que todos os guerrilheiros exigidos como moeda de troca seriam mortos – ou para
fora do país – sobrevi- vendo, ser libertado significaria ser banido do país.
Nas negociações, predominou a posição de Lamarca, que queria
a libertação dos seus e do embaixador. Os dois lados foram soltos. Aluízio,
logo em seguida, foi obrigado pelo regime a embarcar para o Chile. “Não tinha o
que fazer. Eu não queria viver preso e também não queria viver preso dentro de
um país que estava sob opressão”.
O sujeito que havia denunciado Aluízio aos policiais na
rodoviária, lembra-se ele, era um
fiscal de um sítio próximo ao local onde ele e seus companheiros
circulavam. Entre os possíveis motivos que levaram o rapaz a desconfiar daquela
movimentação estaria o envolvimento deles com as questões sociais da região,
especialmente a desigualdade. “Nós deveríamos ter vindo para cá [Foz do Iguaçu]
e não nos envolvido com os conflitos sociais, porque era assim, estava no
manual, estava escrito lá: não se envolvam, vão para o enfrentamento, mas não
se envolvam com questões sociais. E isso tudo chamou a atenção, porque, claro,
defender pobre é coisa de comunista”.
Aluízio para por um minuto e leva a mão à sobrancelha. Coça
a testa e retoma o raciocínio, agora dizendo que ele não acredita que ignorar os conflitos
sociais fosse possível. “É que assim, ninguém segura uma pessoa que tem
consciência e vê uma injustiça. Nós começamos a defender o pequeno agricultor,
defender as pessoas que iam ser despejadas”. E muda de assunto. “Você sabe que
o despejo é uma coisa muito cruel, né? A pessoa tira tudo [de outra pessoa], a
roça que já tá no meio [é abandonada]. Não existe nada mais cruel do que você
ver um despejo, dói, dói quando você vê um
despejo”.
Todo o cone sul do continente americano enfrentou dita-
duras durante períodos próximos. Como exilado, Aluízio também enfrentou
problemas ao entrar em outros países porque, tam- bém ali, corria o risco de
ser capturado como ameaça política.
No Chile, as Forças Armadas depuseram o então presidente
Salvador Allende no ano de 1973 e colocaram Augusto Pinochet no poder, que só
saiu no ano de 1990. Na Argentina, a
então presidente María Estela Martínez de Perón, a Isabelita Perón, foi deposta
por uma junta militar, seguida do governo altamente repressor de Jorge Videla
entre 1976 e 1981, com retorno democrático ao país ocorrendo em 1983. Exilados
políticos desses países – e do Brasil – que circulassem no território não
estavam, por isso, livres de perseguições. Para articular um combate a opositores e líderes de esquerda
ou indivíduos definidos como comunistas, os países do cone sul, incluindo aí também as ditaduras da Bolívia, do
Paraguai e do Uruguai, criaram a Operação Condor. O intervalo de atuação da
aliança foi da década de 60 até 70, com estimativas apontando que 400 mil
pessoas tenham sido torturadas e 100 mil, mortas.
No ano de 1972, ele também entrou na ilegalidade dentro do
Chile pelo seu envolvimento com a VPR lá. A função de Aluízio, nesse momento,
era menos agressiva, recebendo pessoas, abastecendo as famílias, levando
pessoas para lugares, fazendo contatos. No inverno daquele mesmo ano, ele
precisou sair do país, clandestino. Os colegas lhe arrumaram um disfarce de um empresário português.
“Bigodão, rosto mais redondo porque encheram de coisa, tinta forte no cabelo,
terno de primeira, o mais caro que havia no Chile, uma gravata importada, um
sapato lustrado que dava pra usar como espelho para pen- tear o cabelo. Saí
chique de lá. Ninguém ia desconfiar daquele homem tão chique e tão bem vestido,
falando português com sotaque de Portugal, pra ninguém entender mesmo”. O objetivo:
desembarcar em Mendoza, na Argentina. Buenos Aires estava fora de cogitação.
“Eu não queria descer em Buenos Aires. Quem desceu lá, caiu”.
No aeroporto argentino, o passaporte – falso – de Aluízio
foi retido. Não chegaram a atestar de pronto o problema, mas a verificação ocorreria para “averiguar
irregularidades”. Aluízio conta que pensou de que modo ele poderia sair dali
tranquilo. Do lado de fora do aeroporto, Pepe, um amigo do Exército de
Libertação Nacional da Bolívia, companheiro de Che Guevara remanescente na
Argentina, aguardava-o – “armado até os dentes”. “Eu só pensava que qualquer
coisa que acontecesse ali, o Pepe com aquele monte de coisa ia explodir com
aquilo tudo. Ele estava com tudo, espelho de documento, documento falso
brasileiro e argentino, tudo”.
Aluízio fez escândalo. Gritava no aeroporto que não iria dormir
na imigração, esperando o documento ser checado. Queria ir embora para um hotel
cinco estrelas, dez estrelas, qui- nhentas estrelas, o melhor hotel de Mendoza
– mas não ia ficar e não ia sair sem o documento. “Claro que era show, né? Eu
não estava nem aí pro documento, mas tinha que ter teatro que era para os caras
sentirem a situação”. O controle de imigração permitiu que ele fosse procurar o
hotel dez estrelas que pedia, mas sem o documento.
E foi. Entrou num carro com o Pepe-armado-até-os- dentes e sumiu
no mundo.
Nas andanças, veio parar na fronteira. E de novo, a organização
da VPR prometida ali também ruiu e porque, novamente, “a área queimou” e,
novamente, porque Aluízio se envolveu nas questões locais, dessa vez com o
movimento agrário. Fugiu outra vez, agora para Posadas, ainda na Argentina.
Mas, dessa vez, já
não houve mais o que mobilizar.
Era 1973 e Aluízio acompanhava de onde estava o massacre da
Chácara São Bento, em Pernambuco, onde membros da VPR foram assassinados pela
equipe do delegado Fleury. Entre os seis mortos estão a paraguaia Soledad
Viedma, 28 anos, mulher do delator infiltrado na VPR, o Cabo Anselmo, e a tcheca Pauline Reichstul. “Agora a vaca
foi pro brejo”, lembra Aluízio das primeiras palavras quando viu a notícia.
Convocados novamente ao Chile para decidir então o que fazer
a respeito da VPR após o massacre, os membros, incluindo Aluízio, chegaram a
uma conclusão: dissolver o grupo. Dividiram o dinheiro que ainda tinham em
caixa e cada um que seguisse com a sua vida no exílio.
A luta armada não existia mais, não havia organização no
Nordeste, nada em São Paulo, muitos morreram, muitos sumiram, muitos estavam
exilados. Recife tinha caído, Marighella foi morto, não há mais nada. Não havia
resistência.
“Eu vou fazer o quê, meu Deus?”, relembra Aluízio. Julgou
melhor voltar para Argentina. Arrumou os
pertences que ainda reunia consigo e decidiu migrar para Buenos Aires.
Ao chegar, parou em uma banca de jornal – e viu fogueiras, violência,
protestos, repressão, fumaça. O aparelho ditatorial argentino permanecia com
forte repressão. “Eu fiquei pensando enquanto olhava para aqueles jornais que,
meu Deus, não tinha o que fazer! Não posso voltar para Santiago, não posso ir
para Europa porque não tenho documento, não posso voltar para o Brasil... O que
eu faço da minha vida?”.
Ainda em Buenos Aires, contatou uma amiga chamada Ema Cortez,
hoje já morta, e lhe deu uma ordem: “Você vai a Foz do Iguaçu, você vai se
hospedar em um hotel, o dono de lá é meu parceiro, você vai pedir para o dono
do hotel indicar para você a minha sogra, chefe das empregadas. Diz a ela quem
é você, diz que eu estou bem, que eu estou vivo. E diz a ela que era pra ela
mandar a minha mulher e minha filha se encontrarem comigo”.
Trouxe a família e, na Argentina, instalou-se em Corrientes.
Detestou a cidade. Uma pessoa cujos planos revolucionários não haviam dado
certo até aquele dia por seu envolvimento cons- tante com problemas sociais não
poderia viver justamente em uma cidade de latifundiários e uma classe
trabalhadora pouco favorecida, justifica Aluízio. Atravessou a ponte da cidade,
onde confluem os rios Paraná e Paraguai, e se instalou na cidade vizinha, onde
lhe saltou aos olhos a organização de pequenos comerciantes e proprietários,
com uma economia que julgou mais democrática.
A cidade era Resistencia, capital da província do Chaco.
Sobrou-lhe um dinheiro, comprou uma indústria pequena de produção de soda. E
ali ficou, até 1979.
Aluízio voltou ao Brasil quando a Lei de Anistia ainda
estava em votação no Congresso. Ainda que acreditasse pia- mente que a lei não
seria barrada, ele enfrentou a surpresa de antigos companheiros quando foi ao
Rio de Janeiro. A resposta vinha em forma de lógica simples: entre ser
capturado no Brasil de 1979 ou na Argentina, ele preferiria mil vezes o Brasil.
“Se eu fosse preso, eu não seria
torturado, já era 79, não seria torturado. Eu decidi arriscar. Larguei tudo que
eu tinha na mão de outras pessoas e vim embora. Atravessei a fronteira e vim.
Minha família voltou pra Foz do Iguaçu. Eu fui para o Rio”.
Foi nesse intervalo que permaneceu boa parte da vida
buscando, com algum sucesso em termos de informação, o que havia acontecido aos antigos
companheiros.
A Lei da Anistia – ou, pelo número, a Lei 6683 – foi aprova-
da em 28 de agosto de 1979. O projeto havia sido encaminhado pelo que seria o
último governo militar, de João Batista Figuei- redo. A Anistia já havia sido
pensada para, quando a abertura democrática ocorresse, militares não pudessem
ser julgados pelos crimes ordenados por eles (incluindo torturadores) e que,
aos poucos, apareceriam.
Após isso, Aluízio encontrou-se com a família em Foz do
Iguaçu. Passou a viver em liberdade, mas não em paz. “Aquele
ano na prisão, as torturas, os anos na clandestinidade, meus
amigos mortos, amigos de quem eu não tenho notícias... Isso me afetou tanto...
Eu fiquei muito tempo com dificuldade de adaptação. A gente carrega, não
adianta, a gente carrega, to- dos os anos, isso nunca vai deixar de existir”.
No caminho de volta, Aluízio vem comentando sobre o jornal
Nosso Tempo, fundado por ele em Foz do Iguaçu quando retornou anistiado e
conhecido pela sua linha editorial de contestação à ditadura militar de 1964 –
que só terminou no ano de 1985. Com gosto, ele se recorda da estrutura em forma
de cooperativa que o jornal tinha e das reportagens de alto apelo que eram
publicadas. “E tínhamos leitores, as pessoas gostavam muito”.
Um dia, publicaram uma foto de Che Guevara, líder revolucionário
de Cuba. Um anunciante ligou para reclamar. “Um anunciante, um empresário ia
querer uma foto de um revolucio- nário da esquerda no jornal em que ele
colocava a propaganda dele? De jeito nenhum”. Aluízio comenta que, em resposta
à crí tica do anunciante, tirou a foto de Che e, no lugar, publicou uma de
Adolf Hitler, líder nazista da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Entre risos,
ele especula, enquanto dirige, a fúria em que o empresário provavelmente tenha
ficado.
Mas então o tempo passou e a hierarquia empresarial também
chegou para o Nosso Tempo. Houve o dia em que o jornal contestador e escrachado
deixou de ser uma coopera tiva para se tornar uma corporação – e Aluízio,
chefe. Pessoas foram contratadas, equipamentos foram comprados e pautas foram
burocratizadas, na visão dele. “Perdeu-se totalmente o sentido do que era
aquele lugar. A gente recebia doações para trabalhar, nossos equipamentos eram
doados de cooperativas. Daí passou a ser comprado, nota fiscal, conta, tudo
organizado, burocracia, contratar,
demitir.”.
E foi morrendo. O jornal padecia tanto pela mudança na sua
concepção, quanto pelos tempos, agora não mais de contestação a regimes totalitários. Na
democracia, aquela voz alta e firme de antes não parecia caber mais. ): “É um
mal de ideias datadas, né? Você cria e aquilo tem um fim. Se você se adapta,
nem sempre dá para manter aquela vida de antes, aquela caracterís- tica
principal se perde e então se perde tudo”. A adaptação veio para o jornal na
forma de releases de assessorias de imprensa e anunciantes, “coisa que ninguém
quer pagar pra ver”. “Mas o senhor já foi assessor de imprensa, né?”, pergunto.
“Sim, eu sobrevivo, é o que eu tenho feito até hoje”.
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