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quarta-feira, 8 de março de 2017

Serra da Venturosa

                                                
Meteu a alça do embornal na cabeça do arreio, fincou o pé no estribo e tocou...
Ainda havia uns semitons escuros de nuvens preguiçosas emperradas no céu da Serra da Venturosa.
Vestígio da chuva que amainara de repente, como de pronto viera.
Minguando, minguando, ia desaparecendo o chuá volumoso da enxurrada que se desmantelava, perdendo aos piparotes a  sua impetuosidade. Enchia-se de corre,corre o mato vizinho. Miríades de folhinhas humildes se desfaziam em cristais brilhantes. Num ipê debulhado em ouro os corvos negríssimos nele pousados escancaravam o par de asas. Aqui e ali, o vento fresco enxugava as folhas verdes das árvores que deitavam pingos d´água no chão. A natureza inteirinha se renova em trabalho. Num rasguinho de estrada , pedaço do varzedo, Antonio Palmares trotava a passos largos numa mula firme e aguentadeira. Cigarro de palha a fumegar no canto da boca, olhos pregados na estrada e a cabeça baforando cismas, "o morro deve estar liso...o Fidélis já..."
- Uai pai, agora! Dirigiu-lhe o filho arrancando-lhe as cismas.
- A chuva Fidélis, respondeu Antonio. Puxando a mula nos freios para um bate-boca com o filho que voltava do pequeno roçado.
Fidélis era o braço direito da família. Dezesseis anos e já tomava conta de tudo.
- Por lá tudo pronto pai. Foi conta de acabar a queimada e a chuva caiu. Corri pra casa do Bento e esperei que ela passasse.
Levantando os olhos, como se lembrasse de alguma coisa, Fidélis enfiou a mão no bolso, donde tirou alguma coisa. Era um papel dobrado.
- Do Perazo pai, disse, entregando o papel. Parece que é sobre o negócio dos porcos.
-Quem te entregou isso?
- O Perazo, sô.
- O Perazo, quando?
- Hoje de manhãzinha, quando passou com uma treta de cachorros onceiros.
- Cachorros onceiros?
- Uai, então o senhor não sabe que elas andam fazendo ronda no mato dos Buenos.
- Novamente!, não sabia não.
- Pois óia o Bento ontem deu de topo com uma, pouquinho pra cima da venda do Amaro. Foi o tempo dele correr e entrar na venda, que por sorte estava aberta. A bicha  passou bem defronte, quase na cara dele. O senhor que vai, tome cuidado.
Num gesto automático, Antonio levou a mão à cintura e , fez com a cabeça um gesto ao filho e deu com as esporas na mula.
- Até logo, Fidélis.
- Até logo pai. Cuidado!
Na cintura nada. Tivesse ao menos a peixeira, ainda podia defender-se do perigo.
Canivete Corneta nas mãos, matutava Antônio morro acima. Passo lerdo, força dobrada, a mula ia vencendo a  Venturosa, morro bastante espigado. Nasce pouco baixo, manso de início, vai pouco a pouco se empinando. Morro cheio de pedras num trecho, sombrio e úmido noutro. Espicaça-se aqui, tortuoso à frente. Vai indo até que se perde num espigão.
Um pouco liso o morro, de quando em quando um escorregão da mula, seguido de um upa! No mais, pouco a pouco, a frente, Bolinha, cachorrinho tinhoso, fuçava as beira da estrada, hora de um lado, hora de outro.
Quarenta minutos de bom caminhar, Antônio  ganha o alto do morro.
Toca a descer em seguida. Desce um bocadinho, toma de um atalho e entra por uma porteira a dentro. Segue por uma trilha até que alcança o cocho protegido por duas toras de madeira,cinco bois carreiros pastando a relva molhada.
Antônio apeia, toma do embornal na cabeça do arreio, desfaz-lhe o nó da boca e despeja o sal que continha no cocho de pau. Esparrama o sal, chama os bois, monta novamente com a mula de volta, luz difusa, sol escondido, pisado pela noite que vem.
Silêncio empulhado pelos cri-cri dos grilos e o chio das cigarras.
Entrava Antônio por um boqueirão de mato, pensativo e preocupado. Aquela conversa de Fidélis deixou ele preocupado. Descia a serra na noite de pouca lua e na medida que se aproximava da Venda do Amaro o medo correu por suas veias. Um curiango  pousado no meio do caminho levanta voo na cara da mula que se assusta incontinente tentando então firmar-se  nas patas, arrenegando caminho a terra escorregadia quase o leva com o cavaleiro ao chão.
Entre arreganhos de dentes e latidos convulsos, parecia que Bolinha anunciava alguma coisa. Antônio estacou a mula. Foi tempo de Antônio desviar o olhar, apenas uns segundos para o encontrar gemendo, estendido no chão.E a pintada caminhava para o seu lado.
Corpo retransido pelo pavor da morte, olhar estalado, Antônio crispa os dedos na terra frígida. e a onça vinha vindo, vinha chegando, aproximando-se cada vez mais. Seu vulto era timbrado, por frouxa claridade que transpassava pelas ramas de um ingazeiro.Dois ou três passos que desse ele estaria ao alcance de suas patas.
Menos por coragem que por desespero Antônio levou a mão ao bolso pronto pra se defender com o "cornetinha", quando de um barranco ecoou um tiro, e mais outro.

Ante os olhos esbugalhados de Antônio o  imponente  animal tombava sem vida.
Dois homens armados de espingardas chegaram até ele, que ainda permanecia no chão. Um tomou-lhe dos braços, enquanto o outro se dispunha a apanhar a mula. 
- Quase hein, comentou um dos atiradores.
Ainda tomado de grande crise nervosa, Antônio arregalou os olhos para os companheiros.
- Deus lhe pague vizinho,Deus lhe pague.
Noite cerrada e os três homens desceram a Serra da Venturosa.
- E o Bolinha?

- Ficou por lá. Os urubus se encarregam dele.

(Esse conto eu escrevi em 1957)

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