Meteu a alça
do embornal na cabeça do arreio, fincou o pé no estribo e tocou...
Ainda havia
uns semitons escuros de nuvens preguiçosas emperradas no céu da Serra da
Venturosa.
Vestígio da
chuva que amainara de repente, como de pronto viera.
Minguando,
minguando, ia desaparecendo o chuá volumoso da enxurrada que se desmantelava,
perdendo aos piparotes a sua
impetuosidade. Enchia-se de corre,corre o mato vizinho. Miríades de folhinhas
humildes se desfaziam em cristais brilhantes. Num ipê debulhado em ouro os
corvos negríssimos nele pousados escancaravam o par de asas. Aqui e ali, o
vento fresco enxugava as folhas verdes das árvores que deitavam pingos d´água
no chão. A natureza inteirinha se renova em trabalho. Num rasguinho de estrada
, pedaço do varzedo, Antonio Palmares trotava a passos largos numa mula firme e
aguentadeira. Cigarro de palha a fumegar no canto da boca, olhos pregados na
estrada e a cabeça baforando cismas, "o morro deve estar liso...o Fidélis
já..."
- Uai pai,
agora! Dirigiu-lhe o filho arrancando-lhe as cismas.
- A chuva Fidélis,
respondeu Antonio. Puxando a mula nos freios para um bate-boca com o filho que
voltava do pequeno roçado.
Fidélis era
o braço direito da família. Dezesseis anos e já tomava conta de tudo.
- Por lá
tudo pronto pai. Foi conta de acabar a queimada e a chuva caiu. Corri pra casa
do Bento e esperei que ela passasse.
Levantando
os olhos, como se lembrasse de alguma coisa, Fidélis enfiou a mão no bolso,
donde tirou alguma coisa. Era um papel dobrado.
- Do Perazo
pai, disse, entregando o papel. Parece que é sobre o negócio dos porcos.
-Quem te
entregou isso?
- O Perazo,
sô.
- O Perazo,
quando?
- Hoje de
manhãzinha, quando passou com uma treta de cachorros onceiros.
- Cachorros
onceiros?
- Uai, então
o senhor não sabe que elas andam fazendo ronda no mato dos Buenos.
- Novamente!,
não sabia não.
- Pois óia o
Bento ontem deu de topo com uma, pouquinho pra cima da venda do Amaro. Foi o
tempo dele correr e entrar na venda, que por sorte estava aberta. A bicha passou bem defronte, quase na cara dele. O
senhor que vai, tome cuidado.
Num gesto
automático, Antonio levou a mão à cintura e , fez com a cabeça um gesto ao
filho e deu com as esporas na mula.
- Até logo, Fidélis.
- Até logo
pai. Cuidado!
Na cintura
nada. Tivesse ao menos a peixeira, ainda podia defender-se do perigo.
Canivete
Corneta nas mãos, matutava Antônio morro acima. Passo lerdo, força dobrada, a
mula ia vencendo a Venturosa, morro
bastante espigado. Nasce pouco baixo, manso de início, vai pouco a pouco se empinando.
Morro cheio de pedras num trecho, sombrio e úmido noutro. Espicaça-se aqui,
tortuoso à frente. Vai indo até que se perde num espigão.
Um pouco
liso o morro, de quando em quando um escorregão da mula, seguido de um upa! No
mais, pouco a pouco, a frente, Bolinha, cachorrinho tinhoso, fuçava as beira da
estrada, hora de um lado, hora de outro.
Quarenta
minutos de bom caminhar, Antônio ganha o
alto do morro.
Toca a descer em seguida. Desce um bocadinho, toma de um
atalho e entra por uma porteira a dentro. Segue por uma trilha até que alcança o
cocho protegido por duas toras de madeira,cinco bois carreiros pastando a relva
molhada.
Antônio apeia, toma do embornal na cabeça do arreio,
desfaz-lhe o nó da boca e despeja o sal que continha no cocho de pau. Esparrama
o sal, chama os bois, monta novamente com a mula de volta, luz difusa, sol
escondido, pisado pela noite que vem.
Silêncio empulhado pelos cri-cri dos grilos e o chio das
cigarras.
Entrava Antônio por um boqueirão de mato, pensativo e
preocupado. Aquela conversa de Fidélis deixou ele preocupado. Descia a serra na
noite de pouca lua e na medida que se aproximava da Venda do Amaro o medo
correu por suas veias. Um curiango
pousado no meio do caminho levanta voo na cara da mula que se assusta
incontinente tentando então firmar-se nas
patas, arrenegando caminho a terra escorregadia quase o leva com o cavaleiro ao
chão.
Entre arreganhos de dentes e latidos convulsos, parecia que Bolinha
anunciava alguma coisa. Antônio estacou a mula. Foi tempo de Antônio desviar o
olhar, apenas uns segundos para o encontrar gemendo, estendido no chão.E a
pintada caminhava para o seu lado.
Corpo retransido pelo pavor da morte, olhar estalado, Antônio
crispa os dedos na terra frígida. e a onça vinha vindo, vinha chegando,
aproximando-se cada vez mais. Seu vulto era timbrado, por frouxa claridade que
transpassava pelas ramas de um ingazeiro.Dois ou três passos que desse ele
estaria ao alcance de suas patas.
Menos por coragem que por desespero Antônio levou a mão ao
bolso pronto pra se defender com o "cornetinha", quando de um
barranco ecoou um tiro, e mais outro.
Ante os olhos esbugalhados de Antônio o imponente
animal tombava sem vida.
Dois homens armados de espingardas chegaram até ele, que
ainda permanecia no chão. Um tomou-lhe dos braços, enquanto o outro se dispunha
a apanhar a mula.
- Quase hein, comentou um dos atiradores.
Ainda tomado de grande crise nervosa, Antônio arregalou os
olhos para os companheiros.
- Deus lhe pague vizinho,Deus lhe pague.
Noite cerrada e os três homens desceram a Serra da Venturosa.
- E o Bolinha?
- Ficou por lá. Os urubus se encarregam dele.
(Esse conto eu escrevi em 1957)
(Esse conto eu escrevi em 1957)
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