Páginas

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018


A MEMÓRIA

Luiz Carlos Schoroeder

Quando passávamos pela estrada velha da Central Santa Cruz - que um dia fora a Picada Alica e fizera parte dos caminhos ervateiros do extremo-oeste do Paraná - era madrugada porque estávamos indo ou tarde da noite porque estávamos voltando. Era o trajeto mais rápido para se chegar ao Porto Dois, atravessar de balsa o Rio Piquiri e, depois, seguir viagem para Norte do Paraná ou São Paulo. Nesse antigo caminho da erva-mate havia em trecho, não mais de 10km, de estrada estreita e íngreme rodeada de mata alta. Acostumado a viajar pelas mais remotas e desertas estradas do país, lembro-me de ser aquele o único lugar em que o pai sentia medo. Quando eu perguntava a razão do porrete de bater pneus estar na cabine - além do revólver na cinta e do facão três listras sob o assento -, ele obviamente negava o medo e dizia que estava apenas sendo cuidadoso. Mas era ali, na Linha Memória, que o músculo composto de fibras circulares concêntricas, dispostas em forma de anel, apertava. Esse “cuidado” contagiava. A mim e aos motoristas como Hélio, Danilo e Zé Vanzella. Todos tinham demasiada preocupação quando passavam naquele pedacinho de chão mal-afamado. Numa noite enluarada do final de 1966, Hélio e eu voltávamos de São Paulo, o caminhão com a parte frontal amassada em razão de um acidente na capital paulista, quando na Linha Memória, a menos de 30km de casa, fomos perseguidos por um Jeep Willys, capota de metal azul e branco. Esse jipe nos ultrapassava, parava mais à frente, dois de seus passageiros portando rifles rapidamente desembarcavam, mas não impediam a nossa passagem. Quando nos ultrapassou pela terceira vez, sumiu na poeira e não mais o vimos, nem sujamos as calças. Provavelmente nada de mais sério aconteceu porque no para-choque do caminhão estava escrito “Tatuzinho”, em referência à caninha paulista, o que de certa forma identificava o caminhão como sendo da firma. O pai, no outro dia, disse ao Hélio que o jipe deve ser do Marins Bello, chefe da jagunçada dos grileiros de terra. Acordei naquela noite quente e estrelada do início de 1968 quando o pai, poucos meses antes de falecer, estacionou em frente de casa, quase junto à janela do meu quarto, o seu novo Mercedes 1113. Quando eu abri a porta, vi que o rosto dele não era o mesmo, deve ser a doença, pensei. Ele me abraçou, em seguida beijou a mãe que vinha logo atrás de mim, falou que estava com fome, pediu que ela preparasse algo para comer. Ele tomou um banho rápido e sentou para comer aquelas salsichas que ela havia esquentado em banho-maria, acompanhadas de pão preto e mostarda escura. Eu só não o acompanhei na cerveja, mas o ajudei na refeição. Enquanto comíamos, eles conversavam: Tive problemas na Memória; um jipe estava parado no meio da estrada, bem na baixada, perto da ponte, dois rapazes do lado de fora do carro. Jagunços?, perguntou ela. Não! Disseram que ficaram sem gasolina, que um terceiro havia ido a pé até uma fazenda, ali pertinho, buscar combustível. Especulei um pouco, mas não falaram muito. Gente de origem? Um deles, o magrinho, parece um alemãozinho, mas fala com jeito de carioca. O outro é mais gordinho e fala bem o português, nem parece paraguaio. Faz tempo que moram lá? Disseram que estão abrindo a fazenda no Boi Picuá, que vão plantar milho e criar porcos, mas não acredito. Por que não, Ewald? Não têm cara de colonos nem de fazendeiros. São uns guris. E parecem muito esclarecidos, é gente estudada. E como passou, se eles estavam no meio da estrada? Eu ajudei e empurramos o jipe, abrindo espaço. E por que chegou com essa cara de assustado? Quando ajudei a empurrar vi muita arma pesada dentro do jipe. Também vi caixas com comida enlatada. Se não forem policiais disfarçados, devem ser assaltantes de banco ou contrabandistas. Um ano depois, o magrinho se envolveu num acidente com o jipe em Cascavel e foi preso, se chamava André; em seguida prenderam o gordinho, seu nome era Zapata. Saiu no jornal, eram subversivos, faziam parte de um grupo armado, um tal de MR-8 que queria derrubar o governo, treinavam guerrilha na fazenda da Linha Memória. André Palmar - que na cadeia apanhou da polícia e dos jagunços do Marins Bello - mais tarde fez parte do grupo de presos políticos trocados pelo embaixador suíço, sequestrado no Rio de Janeiro. Fábio Catena Zapata foi solto antes, o pai era capitão do Exército em Foz. Atualmente, ambos são jornalistas, o niteroiense Aluizio em Foz e o iguaçuense Campana em Curitiba.


Nenhum comentário:

Postar um comentário