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quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Histórias sinceras da Fronteira

Aluízio Palmar

“Atenção senhores desapropriados que ainda moram na área do reservatório. No final deste ano as águas do Rio Paraná vão começar a subir para formar o Lago de Itaipu.Em duas semanas, uma vasta região
será coberta pelas águas.Às vezes, por morar um pouco distante do rio,é difícil acreditar que as águas cheguem até suas casas.Mas estejam certo de que se as suas terras foram desapropriadas por Itaipu é porque elas estão dentro dos limites do reservatório. E é para impedir que o senhor e sua família fiquem ilhados em sua casa que voltamos a informar que as águas do Rio Paraná vão subir mesmo.”
(Comunicado da Itaipu distribuido aos moradores da região Oeste do Paraná)

Em janeiro de 1982 a Itaipu esparramou pela região onde seria formado o reservatório da hidrelétrica um panfleto conclamando os moradores remanescentes a desocuparem a área.

Naqueles dias que antecederam ao represamento do Rio Paraná ainda havia gente desmanchando casas e galpões em toda a vastidão do perímetro demarcado pelos técnicos da empresa binacional. Em 13 de outubro de 1982 as comportas do canal de desvio foram fechadas e começou a ser formado o reservatório da usina. Às 10 horas de 27 de outubro as águas chegaram às comportas do vertedouro atingindo a cota 220.

Ao relembrar esses fatos decidi resgatar algumas histórias acontecidas naquela ocasião e especificamente contar alguns fatos ocorridos em Alvorada do Iguaçu e Itacorá, duas cidades que desapareceram sob as águas do imenso lago de 1.350 km2. Porém, na medida que ia escrevendo surgia dentro de cada caso um novo caso que por sua vez gerava um caso novo e assim sucessivamente. Ao mencionar, por exemplo, a hoje submersa estrada Foz/Guaíra eu me lembrei
das preparações do MR8 para a guerrilha rural; ao contar o caso das cabeças cortadas na fazenda dos Mesquitas, citei no texto a Ponte Queimada sobre o Rio São Francisco e em conseqüência relembrei alguns fatos acontecidos durante a passagem da Coluna Prestes pela região de Santa Helena. Era como se eu estivesse brincando com uma matrioshka; aquela boneca russa que se encaixa uma dentro da outra.


As cidades
submersas

Eram sete horas da manhã do dia 6 de setembro de 1982, quando saí para Alvorada do Iguaçu com a missão de entrevistar para o semanário Nosso Tempo os últimos moradores daquela vila que havia surgido em 1960 para ser uma cidade planejada e estava com seus dias contados. Em breve ela seria coberta de água.
Faltava pouco mais de um mês para o fechamento das comportas do canal de desvio e a região estava deserta. Raramente aparecia alguém ao longo da estrada. A quiçaça tomava conta dos campos antes tomados por lavouras, e das casas e galpões que eram vistos ao longo do caminho só restaram os cepos. Outros madeirames foram levados para as novas propriedades e dos espaços de chão batido, onde antigamente se erguiam as moradias dos colonos, só ficaram suas histórias. Algumas me foram contadas por Alcides Binotto, um carpinteiro que trabalhava nas demolições. Eu o conheci em Alvorada do Iguaçu, ou melhor, no que restou dela, quando desmanchava o que um dia foi a casa comercial de Belmiro Mariani, uma das poucas construções remanescente no vilarejo. Entre velhas vigas de aroeira e caibros de cedro, seu Alcides recordou os dias de movimento, quando os colonos se juntavam na venda para beber cachaça e contar causos. Recordou as reuniões políticas que eram feitas no salão e contou-me em voz baixa que certa ocasião quando o deputado Alencar Furtado visitava a região foi ao Belmiro conversar com o povo. O boliche ficou cheio. Tinha gente pendurada nas janelas e até do lado de dentro do balcão. Alencar era famoso pelos discursos inflamados, em que ele desancava a ditadura. Um deles serviu de pretexto para a cassação de seu mandato de deputado federal. Foi em 1977, quando no simpósio Luta pela Democracia, ele criticou a falta de liberdade no País e denunciou a violenta repressão aos opositores do regime, as prisões arbitrárias e o desaparecimento de cidadãos. “Defendemos a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares em pranto; filhos órfãos de pais vivos – quem sabe mortos talvez... Órfãos do”talvez” e do “quem sabe”.
Veio a anistia, Alencar Furtado voltou à Câmara Federal em 1983 e só desapareceu do cenário político paranaense após perder para Álvaro Dias a eleição de governador em 1986.
Alencar estava cassado e com os direitos políticos suspensos quando falou, em 1978, para o povo reunido na venda de Alvorada do Iguaçu. Apesar de estar punido pela ditadura, sem poder votar e ser votado, ele peregrinava pelo Estado fazendo campanha para seu filho Heitor, que foi eleito deputado federal com uma votação extraordinária e morreu em outubro de 1980, vítima de um atentado.
Por causa da reunião em seu estabelecimento, Belmiro Mariani foi fichado como subversivo e passou a receber visitas periódicas dos agentes do serviço de informações do Batalhão de Fronteiras. Desde então sua vida desandou, perdeu o ânimo pelas coisas e descorçoado fechou a sua casa comercial em 1980 indo trabalhar como operário numa fábrica em Cascavel.
Naquela época muitos colonos venderam suas propriedades a preço de banana e foram viver em casa alugada e trabalhar como empregados em outras cidades. Alguns caíram vítimas de estelionatários que percorriam a região soltando boatos e dando golpes. Um desses estelionatários foi o advogado Ubiratan Costa, que dizia ser protegido dos militares do 1º Batalhão de Fronteiras, afilhado do bispo de Cascavel, dom Armando Círio, sobrinho do almirante Luiz Oliveira e do general Isaac Nahan. Com tantos parentescos e proteções, mais um arsenal de astúcias e muita lábia, o advogado enganava com facilidade os habitantes da região. Comprava a propriedade por uma ninharia, com o argumento de que vendendo para ele o colono receberia em poucos meses, enquanto negociando direto com Itaipu o recebimento iria demorar de 10 a 20 anos. Para sustentar sua história o estelionatário citava seus “parentes e protetores” poderosos. Aqueles que caíram em sua conversa acabaram indo parar na rua da amargura, sem eira bem beira.
Itacorá e as
sepulturas submersas

Assim que terminaram minhas entrevistas em Alvorada do Iguaçu parti para Itacorá e Santa Helena. A vila de Itacorá, que ficava a 60 quilômetros de Foz do Iguaçu e às margens do Rio Paraná, foi submersa um mês após ter completado 15 anos de existência. Tudo desapareceu no fundo do imenso lago. As águas do Rio Paraná inundaram a terra como num dilúvio, nivelando com seu lençol prateado casas, galpões, armazéns, lembranças, vivências e convivências.
Talvez tenha sido devido às vivências que seu Bonorino resistiu um monte para sair do sítio apesar dos vários ultimatos dados pela Itaipu. Ele dizia que as águas não iriam chegar até sua propriedade. Eu soube mais tarde pelo Orestes Gasparini, um dos líderes do Movimento Justiça e Terra, que o velho resistia em sair do sítio porque estava convencido de que iria perder a alma caso fosse embora para outro lugar. Corria na região que Bonorino havia enterrado a mulher num capão de mato e tinha medo de não poder cumprir o juramento de ser enterrado ao lado dela. Naquela época havia muitas sepulturas espalhadas pela região. Quando represaram o rio, cemitérios legais e clandestinos também foram submersos pelas águas.
Quem me deu a dica sobre o seu Bonorino em Itacorá e de sua resistência para sair do sítio que seria inundado foi meu velho amigo Gonço, ou melhor, Gonçalino de Assis, que naquela época era soldado da Polícia Militar e servia em Foz do Iguaçu, no 14º BPM. Mais tarde ele foi promovido a cabo e finalmente se aposentou como sargento, depois de comandar os destacamentos de Santa Terezinha de Itaipu e de Itaipulândia.
Eu conheci o soldado Assis em 1980, quando o Brizola veio a Foz para lançar o novo PTB, idealizado um ano antes numa reunião realizada em Lisboa pelos brasileiros exilados na Europa. Apesar do País ainda ser governado pelos militares e as leis discricionárias estarem em vigor, o salão do tradicional Oeste Paraná Clube ficou lotado e muita gente acompanhou os discursos pelas caixas de som instaladas no lado de fora.
Brizolista da velha cepa, Gonço trabalhou comigo na organização do ato público. Naquela época ele me apresentou a alguns colegas de farda e eu tentei ganhá-los para a causa da democratização do País e do socialismo. Um desses foi um tenente que me causou uma baita decepção. Também quem mandou eu me iludir com o cara! O meu desapontamento aconteceu em 1983, quando esse PM arrancou um megafone de minhas mãos. Foi durante uma manifestação na porta da prefeitura. Ele pediu o megafone, eu não entreguei, ele puxou e eu segurei firme. Resultado: o megafone quebrou. Quebrou, mas eu não entreguei.
Isso aconteceu numa manhã de dezembro de 1983, quando fizemos uma manifestação contra o aumento de 40% no preço da passagem de ônibus. O povo já não agüentava tanta carestia e de repente o coronel Clóvis Cunha Bueno, prefeito nomeado de Foz do Iguaçu, havia tornado, com um canetaço, os empresários mais ricos e os trabalhadores mais pobres. Por isso a proposta de caminhar até a prefeitura pegou em todos os bairros.
Nove horas da manhã e estávamos lá, concentrados e pedindo a revogação do decreto que autorizava o aumento. Assustado com a multidão que se aproximava do prédio da prefeitura um vigia tentou fechar a pesada porta de ferro. Não conseguiu. A massa entrou na marra no prédio da prefeitura e acampou no gabinete.
Depois dessa refrega fomos atendidos pelo Wilson Batista, que era o ajudante-de-ordem do prefeito. Ele nos comunicou que o coronel Clóvis Cunha Vianna iria abaixar o preço da passagem, o que de fato aconteceu no dia seguinte.

Cabeças cortadas,
ponte queimada

Quando eu cheguei a Santa Helena para entrevistar Plínio Angeli, o ambiente era extremamente tenso. Naquele dia muitas famílias estavam indo embora e o impacto das desapropriações para formação do reservatório de Itaipu atingia toda população. Cerca de 30 por cento da área total de Santa Helena estava para ser inundada e milhares de colonos migravam para outros municípios e até para outros estados.
Encontrei o Plínio na Câmara de Vereadores, onde ele trabalhava. Eu o conheci em 1980, por intermédio de seu irmão José Angeli, jornalista e escritor de mão-cheia que mora em Curitiba, mas tem parentes e amigos espalhados por toda a região Oeste, onde seu pai foi um dos desbravadores. Zé Angeli é, como ele próprio diz, um velho companheiro das peleias travadas contra a ditadura. Plínio era do PCB e militou antes do golpe militar no Rio de Janeiro. Devido a essa militância foi fichado pelos órgãos de repressão do regime e controlado durante anos pelos agentes dos serviços de informações do Exército e da Polícia Federal.
Quando o encontrei ele estava triste com o esvaziamento econômico e populacional de Santa Helena. “Agora só resta escrever a história”, dizia Plínio, enquanto tentava abotoar a camisa que teimava em expor seu imenso barrigão. E histórias Santa Helena tem às pencas; algumas ainda não foram escritas, como a morte por enforcamento de dezenas de camponeses, ocorrida na fazenda dos Mesquitas, localizada na região da Ponte Queimada. Naqueles últimos anos da década de 60 a violência contra os posseiros era de tal monta que os jagunços matavam os pais e seqüestravam as filhas menores para morar com eles, como está registrado nas declarações prestadas à Polícia Federal pelo agricultor Ortêncio Elibrando Monteiro. No depoimento dado à PF, Ortêncio contou que além de seqüestrar as moças, os jagunços dos Mesquitas cortavam as cabeças dos pais e as levavam para as famílias.
A região onde ocorreram esses conflitos pela terra leva o nome de Ponte Queimada, pelo fato de existir ali destroços da ponte que cruzava o Rio São Francisco Falso e que em 1925 foi queimada pelos revolucionários de Luiz Carlos Prestes para impedir a passagem da tropa governista comandada pelo general Cândido Rondon.
Durante sua marcha pelo oeste do Paraná, Prestes e seus comandados encontraram uma terra dominada por empresas concessionárias da exploração de erva-mate e madeira de lei. Na região de Guarapuava e Laranjeiras dominava a Companhia Mate Laranjeira, enquanto que no Alto Paraná, na região de Guaira e Porto Mendes, quem explorava a erva-mate era a Companhia Allica.
Nos obrajes, predominava o trabalho escravo e os trabalhadores, suas mulheres e filhos eram tratados com violência. Os mensus, uma derivação do espanhol mensualista, eram a mão-de-obra quase absoluta empregada nos trabalhos de extração de madeira e erva-mate. Constituída basicamente por paraguaios, sua arregimentação era feita pela força e eles deviam obediência irrestrita aos obrajeros e seus capatazes, verdadeiros monarcas, com poder de vida e morte sobre os trabalhadores.
Enquanto as autoridades constituídas atuavam sempre em defesa dos donos dos obrajes, a violência, corriqueira nos acampamentos, não era contestada pelos mensus. Fracos e descalços, eles passavam meses embrenhados no mato. Fugir era impossível. Quem se aventurava ia pra cadeia ou acabava boiando nas águas do rio Paraná.
Os atos de violência mais contundentes ocorriam na hora do acerto de contas. Os mensus estavam sempre devendo para o patrão. Esse endividamento constante e progressivo aumentava o grau de dependência, que já começava na contratação do peão, quando ele recebia um adiantamento, chamado de antecipo. O dinheiro era dado a peonada antes do embarque para os futuros locais de trabalho. As embarcações atrasavam de propósito até cinco dias e durante esse tempo os peões gastavam todo o antecipo com mulheres e bebidas e quando chegavam no obraje estavam devendo para o patrão. O desgraçado do trabalhador nunca mais conseguia pagar o que havia recebido.
O mais temido dos capatazes era o carrasco Santa Cruz, cunhado de Júlio Allica cujo império se estendeu por quase todo o oeste paranaense. Foi ele o responsável pelo maior dos massacres de mensus de que se tem conhecimento. Cansados de serem explorados e dos maus tratos um grupo de trabalhadores dos obrajes de dom Júlio decidiu fugir. Alguns se embrenharam no mato em direção a Campo Mourão e escaparam da patrulha do carrasco Santa Cruz; outros seguiram para Pitanga e não tiveram a mesma sorte. Foram massacrados pelos homens leais ao cunhado do obrajero. O lugar das mortes ficou conhecido como “Las Cruces”.
O império dos concessionários da exploração de erva-mate e de madeira só foi derrocado graças aos revolucionários de 1924. Durante sua marcha pela estrada Foz/Guíra em direção a Porto Mendes a tropa comandada por Luiz Carlos Prestes atiçou o ânimo da peonada e com ela marcharam os paraguaios, argentinos e brasileiros que viviam nos acampamentos. Os mensus aproveitaram a oportunidade para escapar da escravidão dos obrajes e caminhar junto com os oficiais e soldados da coluna. Durante a fuga os trabalhadores deixaram para trás pontes destruídas, balsas afundadas e o corpo de Santa Cruz, abandonado na região de Quatro Pontes após ter sido degolado por um golpe de facão.


A base da guerrilha
que não aconteceu


Eu conheci a estrada Foz/Guaíra em 1968, durante reconhecimento da área onde deveriam ocorrer as lutas do foco guerrilheiro da Dissidência Comunista, que mais tarde deu origem ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro - MR8. Foram quase seis meses de andanças pelas estradas do Oeste, levantando rios, riachos, pontes, pontilhões, áreas de conflitos sociais, postos policiais e outros prédios públicos. Dessas caminhadas pelos caminhos de chão batido da região participaram, eu, Nielse e Bernardino. Eu, estudante de ciências sociais da Universidad0e Federal Fluminense; Nielse Fernandes, operário naval de Niterói, e Bernardino Jorge Velho, ex-sargento do então 1º Batalhão de Fronteiras e quadro rural do Partido Comunista Brasileiro - PCB. Aliás, todos nós éramos oriundos do velho Partidão; rachamos por discordar da linha política imposta pelo Comitê Central – conciliadora no plano interno e reboquista em nível internacional. A direção do PCB seguia ao pé da letra as orientações do Partido Comunista da União Soviética. Nós dissidentes pregávamos a luta armada contra a ditadura e éramos críticos do PCUS e dos seus satélites da Europa Oriental.
Eu conheci o Bernardino por intermédio do Fábio Campana, que também havia rachado com o PCB e organizado a Dissidência Comunista no Paraná. A admirável facilidade que o “Bigode Branco” tinha para se comunicar com as pessoas me impressionou desde o nosso primeiro encontro. Graças a ele montamos para a futura guerrilha uma extraordinária rede de apoio, constituída por pequenos proprietários rurais, posseiros, meeiros e peões. Só os mais íntimos o conheciam pelo nome de batismo. Por onde a gente andava todos os chamavam de “Bigode Branco”. Aliás, aquele bigode ralo, metade branco e metade negro era sua marca característica. Bernardino se negava a tingi-lo e só o fez no final de 1969, quando a organização foi desmantelada e ele foi viver clandestino em São Paulo. Nunca foi identificado pela repressão, que nas sessões de tortura queria que disséssemos quem era o homem de bigode branco, conhecido na luta revolucionária pelo nome de guerra de “Santos”.
Eu só vim rever o Bernardino em 1993, quando ele veio a Foz do Iguaçu para visitar seu filho, o advogado Domingo Jorge Velho, e tentar reaver um sítio que dizia ter sido grilado por Silvino Dal Bó.
Nesse encontro recordamos acontecimentos que o passar do tempo e o rigor da clandestinidade haviam apagado de minha memória. Lembramos de nossas andanças pelos caminhos daquela que nos planos da organização seria a área do foco guerrilheiro, como certa ocasião em que nos infiltramos entre os trabalhadores da Fazenda Rami, em Matelândia e ficamos chocados com a exploração a que o dono da propriedade submetia seus empregados. Muitos deles tinham os dedos decepados pelas máquinas, conhecidas como “periquitos”, nas quais eram desfibradas as hastes do rami, uma planta cuja fibra é utilizada na fabricação de tecidos, cordas e barbantes.
A jornada de trabalho era estabelecida em regime de 12 horas por dia e o pagamento era feito por meio de vale-barracão. Os trabalhadores estavam sempre endividados com o dono da fazenda que também era o dono do armazém, onde os produtos eram, duas ou três vezes, mais caros do que na cidade, onde, normalmente não podiam ir. O esquema de fiscalização era rígido e aqueles que eram apanhados em fuga sofriam castigos físicos.
Na noite que passamos no dormitório dos trabalhadores solteiros da Fazenda Rami, falamos de liberdade, socialismo e revolução. Quando fomos embora, antes do dia amanhecer, muitos daqueles peões queriam ingressar na guerrilha. Desconversamos e saímos de fininho. De acordo com as regras para a implantação do foco guerrilheiro ainda não era o momento para aquele tipo de recrutamento.
A Dissidência Comunista do Estado do Rio foi a única das organizações político-militares oriundas do PCB que tentou pôr em pratica a proposta guevarista do foco guerrilheiro. Nós éramos extremamente sectários na defesa da teoria de que um grupo de combatentes enraizados numa área rural, com um mínimo de infraestrutura e combatendo esporadicamente poderia mobilizar o País para a luta contra a ditadura e pelo socialismo.
Foi para pôr em prática esse projeto que eu, Nielse Fernandes, Miltom Gaia Leite, Bernardino Jorge Velho, César Cabral e João Manoel Fernandes ficamos quase um ano internados no Parque Nacional do Iguaçu. Nosso instrutor era o paraguaio Rodolfo Ramirez Villalba, membro da Frente Revolucionária Colorada - FRC e conhecedor das técnicas da guerra de guerrilhas.
Os primeiros contatos da Dissidência com a FRC, uma espécie de agrupamento de esquerda dentro do Movimento Popular Colorado- Mopoco, foram feitos graças ao César Cabral, que veio em definitivo para Foz do Iguaçu alguns anos antes de nossa chegada à região. Ele estudava economia na Universidad del Nordeste, na Província do Chaco, Argentina, e devido a sua militância de esquerda passou a ser perseguido naquele país. Em Foz, César foi ajudar o pai a tocar um açougue e em pouco tempo fez amizade com o Fábio Campana, que passava uma temporada com a família. O clima político em Curitiba estava carregado e Fábio vinha sendo ameaçado devido as suas atividades no meio estudantil.
Durante meses os dois “exilados” devoraram livros e mais livros e passaram por momentos de inquietações como todos os jovens politizados daquela época.
Quando cheguei em Foz do Iguaçu no outono de 1967 com a missão de entrar em contato com o Fábio, ambos estavam estudando o 18 Brumário de Bonaparte, de Karl Marx e A Revolução Brasileira, de Caio Prado Júnior. Desembarquei na rodoviária velha, que ficava no centro da cidade, carregando uma imensa mala de couro, com manuais de guerrilha, livros de Regis Debray e Che Guevara, mapas da região, um revólver 38, um rifle de ferrolho e alguma munição. Fábio me hospedou num quartinho nos fundos da Padaria Progresso, de Rodolfo Mongelos, que ficava na Avenida Brasil. Começaram então os contatos da Dissidência Comunista com os colorados de esquerda.
Sete anos após esses acontecimentos, Rodolfo Villalba foi preso, quando ingressava em território paraguaio regressando da Argentina, e levado para o Departamento de Investigações da Polícia Política, em Assunção, juntamente com seu irmão Benjamin, foi torturado até a morte.
Daquele período de preparação para os combates que não aconteceram ficou gravada em nossa memória a solidariedade de nossos contatos camponeses. Que tempo meu Deus! Vez ou outra a gente saia do meio do mato para jantar no rancho de seu Pedro Gordo. No meio da noite, equipados de coturnos, mochilas, rifles e fuzis, os candidatos a guerrilheiros atravessavam a BR 277, ali na altura de Tatu Jupy, e eram recebidos com um bufê de galinha caipira, pirão, arroz, feijão e mandioca, que fumegava no fogão à lenha, feito de tijolo e argila.
A solidariedade das famílias camponesas nos estimulava naquelas nossas caminhadas solitárias. Esses apoios vinham de todas as direções e nos momentos de maior aperto eles quebraram nosso galho. Quando caminhávamos, por exemplo, desde Santa Helena em direção à Bela Vista, na BR 277, éramos recebidos pelo Nardo, taxista de Vera Cruz do Oeste e por seus pais, dona Astra Fruet e seu Artur, em cujo paiol passávamos as noites. Era um luxo deitar naquela montanha de arroz ainda sem descascar. Luxo porque na maioria das vezes dormíamos no meio das roças, como em certa ocasião quando fomos fazer uns contatos em Pato Bragado. Na volta para Foz do Iguaçu, um pouco antes de Itacorá, começou a chover às pampas. Paramos no meio de uma plantação de menta e deitamos entre as toras espalhadas pela área recentemente desmatada. Naquela noite, dentro de nossos sacos de dormir, com o fecho ecler puxado até o queixo, pegamos no sono embalados pelo barulho da chuva e pelo suave aroma de hortelã.

A luta dos
desapropriados

Faltavam cinco dias para o fechamento das comportas. Em breve as águas do Paranazão iriam começar a subir e encobrir o que restava das plantações e das ruínas que os colonos iam deixando para trás. A não ser algumas casas nas vilas de Itacorá e Alvorada do Iguaçu, o restante já havia sido desmontado. Quem ficou na região aproveitou o madeiramento das construções. Mas aqueles que foram para longe venderam casas e galpões inteiros para moradores de São Miguel, Santa Terezinha e até de Foz do Iguaçu. O professor José Kuiawa, um dos pioneiros do ensino superior na região oeste, chegou a comprar uma igreja e a adaptou para servir como moradia. A casa, que um dia foi um templo religioso, está até hoje no começo da Avenida General Meira, logo após a Igreja Luterana, em Foz do Iguaçu.
Como conseqüência da repentina valorização da terra no Oeste, muitos dos agricultores desapropriados não conseguiram adquirir novas propriedades na região. O preço oferecido pela Binacional não ultrapassava a metade do valor que era pedido por propriedades idênticas fora da área que seria desapropriada.
A resistência aos preços oferecidos pela Itaipu durou cerca de cinco anos. No começo foram pequenas reuniões nas igrejas católicas e luteranas da região. Após dezenas de tentativas frustradas de negociação, no dia 14 de julho de 1980, cerca de 400 agricultores sitiaram o escritório da Itaipu em Santa Helena, interditando as ruas com caminhões, tratores e outras máquinas agrícolas. Os manifestantes pediam indenização justa para os atingidos pelo plano de desapropriação de terra na área onde seria formado o reservatório.
A imprensa da região foi para Santa Helena e os boletins radiofônicos acabaram atraindo colonos dos arredores. Nas primeiras horas da tarde já eram cerca de 1.500 manifestantes que se deslocaram de Rondon, Itacorá, Missal, Alvorada do Iguaçu e outras localidades. Para garantir alimentação aos acampados várias carretas carregadas com gêneros alimentícios foram estacionadas no local. Um serviço de alto-falante denominado Rádio Justiça e Terra foi instalado em cima de um caminhão e por ele desfilaram oradores e duplas de cantores acompanhadas por sanfona e violão. Em pouco tempo dezenas de barracas de lona tomaram conta da área do acampamento e faixas e cartazes com dizeres alusivos ao movimento foram espalhados nas imediações e colados nos pára-brisas e na parte traseira dos veículos estacionados.
Uma comissão para negociar com a Itaipu foi eleita pelos manifestantes e as reuniões se prolongaram até a diretoria da Itaipu prometer rever posições e abrir um canal de negociação com os colonos. Diante do compromisso assumido os agricultores desmontaram o acampamento e retornaram às suas propriedades.
Passados mais de sete meses e como a empresa binacional não cumpria as promessas feitas nas reuniões de Santa Helena os colonos resolveram fazer uma nova assembléia. Dessa vez foi em Itacorá no dia 16 de março de 1981. Nela os agricultores decidiram marchar em direção a Foz do Iguaçu e acampar em frente do Centro Executivo, na Vila A. No dia seguinte setecentos colonos partiram em carros e caminhões, com equipamentos e mantimentos, dispostos a ficar acampados por semanas ou meses, até que Itaipu atendesse às reivindicações. Ao chegarem próximos ao trevo em que a BR 277 se bifurca em direção à ponte que liga o Brasil ao Paraguai e em direção ao Centro Executivo, os agricultores foram impedidos de prosseguir. Andaram mais dois quilômetros pela Avenida Paraná e antes de chegarem nas proximidades das primeiras casas do conjunto residencial da Vila A foram barrados por 200 homens da PM e da segurança da Itaipu, armados com revólveres, cassetetes e baionetas montadas na ponta de fuzis.
Foi grotesca a cena, os soldados na posição de disparar, tremendo de vergonha ao terem de apontar suas armas para os agricultores desarmados e acompanhados por suas mulheres e filhos. Diante do aparato repressivo os manifestantes decidiram recuar e montaram o acampamento no entroncamento da Avenida Paraná com a BR 277. Graças a organização adquirida na luta reivindicatória foi possível manter por 54 dias o acampamento. No local que ficou conhecido como o “Trevo da Vergonha”, os agricultores organizaram comissões de alimentação, segurança, higiene, imprensa e tal como em Santa Helena a “Rádio Justiça e Paz” foi instalada e transmitiu pelos seus dois alto-falantes mensagens e discursos das lideranças do movimento, de políticos e religiosos. Em 9 de maio de 1981, quase dois meses após terem chegado a Foz do Iguaçu, os colonos desmontaram as barracas e regressaram para suas propriedades com boa parte das reivindicações atendidas pela Itaipu. Às oito horas da manhã rezaram a última missa ecumênica oficiada pelo bispo dom Olívio Fazza e pelo pastor luterano Werner Fuchs.


A rede de espionagem
de Itaipu

No Estado Policial, implantado a partir do golpe civil e militar de 1964, a Itaipu Binacional criou um formidável aparelho de espionagem e repressão que oficialmente levou o nome de Assessoria Especial de Segurança e Informações..
Comandada e operacionalizada por oficiais reformados, todos com serviços prestados nos órgãos de repressão do eixo Rio/São Paulo, a AESI possuía uma radiografia completa de cada funcionário e atuava em conjunto com o Centro de Informações do Exército, especificamente com a 2ª Seção (Serviço Secreto) do 1º Batalhão de Fronteiras, hoje 34º BIMtz, com o Serviço de Informações das polícias Federal e Militar, com o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), com o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa) e com o Serviço Nacional de Informações
(SNI).
As fichas preenchidas pelos candidatos a emprego na construção da hidrelétrica eram enviadas para análise de todos os órgãos que compunham o sistema repressivo da ditadura. Cópias de centenas desses documentos acompanhados por pedidos de busca de antecedentes fazem parte do acervo do arquivo da Delegacia da Polícia Federal de Foz do Iguaçu. Todos aqueles que militaram no movimento sindical ou estudantil tiveram seus pedidos de emprego recusados. Outros foram vetados por terem parentes ou amigos fichados pela repressão, como é o caso do advogado Victor Augusto Fasano. Ele não foi admitido porque seu nome constava na agenda de endereço de Mariano da Silva, militante da VAR Palmares, uma das organizações da esquerda armada que lutou contra a ditadura. O veto a Fasano ocorreu em 1983, quatro anos após a promulgação da Lei de Anistia.
Outro caso que ilustra as tropelias praticadas pela rede repressiva instalada na fronteira é o de Paulo José Dias, topógrafo que trabalhava para a Planta Engenharia S/A, consorciada da Matrix Engenharia S/A, empresa designada para fazer o cadastro de implantação do canteiro de obras da barragem de Itaipu. Paulo foi preso em 12 de setembro de 1973 e respondeu a interrogatórios nas polícias civil e federal e também no Batalhão de Fronteiras. O motivo, de acordo com documentos encontrados no arquivo da Delegacia da Polícia Federal de Foz do Iguaçu, foi a descoberta pela AESI de que um colega do topógrafo que trabalhava na Usiminas havia sido preso como subversivo em 1964. Ainda de acordo com relatório arquivado no acervo da DPFI, outro motivo para a prisão do topógrafo foi porque uma de suas tias ser casada com o tio do padre Geraldo da Cruz, preso em 1967 “por ser membro de uma congregação religiosa suspeita de ser subversiva”.
A Assessoria Especial de Segurança e Informações não se limitava a investigar a vida pregressa ou a espionar os candidatos a emprego e os funcionários da Itaipu. Durante meses o serviço de informações da Binacional espionou o médico ortopedista Agostín Goiburú, cidadão paraguaio exilado na Argentina. No dia 15 de dezembro de 1976, a AESI enviou para os órgãos repressivos da ditadura do general Stroessner, com a classificação de Informe 031/76 o resultado da investigação realizada pelos espiões da Binacional. Em seguida o médico ortopedista foi seqüestrado pela polícia política paraguaia e levado para o Regimento Escolta Presidencial, em Assunção, onde foi torturado até a morte.
O serviço de espionagem da Itaipu funcionou até mesmo após a anistia e possuía bases nos escritórios de Brasília, Rio de Janeiro e Curitiba. Em 13 de janeiro de 1981, o escritório carioca enviou para a DGIE/RJ e para a DPF/RJ o Pedido de Busca E/ASS/AESI/RJ/001/81, solicitando informações sobre o psiquiatra contratado pela União das Construtoras – Unicon, Jorge Ramillo Salles, com o seguinte teor:
Itaipu Binacional
Rio de Janeiro
Av. Nilo Peçanha 50/11º andar
Confidencial
Urgente
Assessoria de Segurança e Informações - AESI
Dados Conhecidos
a) Os constantes da anexa Ficha Individual;
b) Trata-se de empregado da UNICON, onde exerce o cargo de médico, admitido em 15 JUL 80, atuando no Canteiro de Obras desta Entidade, em Foz do Iguaçu;
c) Em 1965, teria sido Presidente da UNE –União Nacional dos Estudantes. Nos dias 10 e 11 de abril do mesmo ano, teria participado de uma reunião de estudantes realizada na sede do Círculo Operário de Campinas, situado na Rua Regente Feijó nº1421, cujos temas teriam sido os seguintes:
- envio de tropas brasileiras para o exterior;
- internacionalização da Amazônia;
- reintegração do estudante na política brasileira.
Na citada reunião teriam comparecido cerca de 120 (cento e vinte) participantes, entre eles os seguintes elementos:
- Alberto Abissamara, Presidente da UNE;
- Evaristo Koloya Rocha, presidente da UEE;
- Alcebíades Tavares Dantas, representante da União Fluminense de Estudantes – UFE.
d) Em 1972, teria participado da organização, no Rio de Janeiro, do curso “O Diagnóstico em Psicopatologia Infantil”, ministrado pelo professor Maurício Knobel e patrocinado pela Associação de Psiquiatria e Psicologia da Infância e Adolescência (1º Congresso Brasileiro de Psicologia Infanto –Juvenil).
e)Em1974 teria realizado no Rio de Janeiro o curso de “Uso de Escolas de Psiquiatria”, ministrado pelo professor Max Hamilton (II Congresso Brasileiro de Psiquiatria).
Em maio de 1974 teria estado no Rio de Janeiro representando a Universidade Estadual de Londrina/PR (UEL) como convidado da Organização Pan-Americana da Saúde Materno-Infantil patrocinada pela Fundação W.K.Kellog – O.P.A.S.
DADOS SOLICITADOS
1. Registros existentes sobre o Sindicato;
2. Confirmação dos dados constantes nas letras C,D,E e F;
3. Outros dados julgados úteis e esclarecedores.
SOLICITAÇÃO ESPECIAL
Possível urgência no atendimento ao presente PB

Toda poderosa, a AESI fuçava nos mínimos detalhes a vida dos funcionários, como pode ser verificado no Informe 2566/82, que relata o trabalho de investigação das atividades do funcionário do consórcio Itamon, José Ledres Pontes, “Zé Mineiro”. Este documento revela que, correspondências eram interceptadas e jornais eram apreendidos ilegalmente, em pleno ano de 1982.
“Em 13.MAI 82, órgãos de informação de Curitiba interceptaram correspondência dirigida a sucursal do jornal Tribuna da Luta Operária, naquela cidade, encaminhadas através do Posto de Correio do Canteiro de Obras da Itaipu;
A remessa do documento foi elaborada por um tal “Zé Mineiro”, o qual estaria distribuindo referido jornal aos operários de Itaipu;
Após buscas realizadas no Canteiro de Obras, verificou-se que na banca de jornais do Centro Comunitário havia dois exemplares. O proprietário do estabelecimento disse que não pretendia vendê-los, tanto que não os colocou à mostra;
Como resultado das buscas realizadas foi possível identificar como sendo o provável “Zé Mineiro”, o funcionário José Ledres Ponte, do Consórcio Itamon;
Na campanha eleitoral o nominado deu apoio a Miron Niclevcz;
Reside no alojamento Pavilhão B-8, quarto 46, cama 4;
Os exemplares foram recolhidos pela AESI/Itaipu e entregues ao 34º BIMtz;
Nasceu em 31.01.54 em Minas Gerais, veio de Santo André, do ABC. Profissão mecânico montador.”

A greve de Fome
na Itaipu

Apesar de todas estes cuidados e do clima de terror implantado pelos “beleguins” do general Costa Cavalcanti, no dia 28 de outubro de 1975, um grupo de operários iniciou uma greve de fome no Canteiro de Obras de Itaipu, em protesto “contra a péssima alimentação” que era servida.
A greve de fome durou três dias e começou entre os operários da subempreiteira Vila Rica, que por sua vez prestava serviços a empreiteira Adolpho Lindemberg. Foi um movimento espontâneo e pegou toda a direção da empresa de surpresa. Roberto Helbling, um militar reformado, escolhido a dedo para dirigir o setor de segurança da Obra, ficou sem ação e pediu ajuda ao SNI. De Brasília veio a ordem de chamar o general Adalberto Massa, delegado Regional do Trabalho. A presidência da República tinha receio de que os grevistas fossem reprimidos no cacete e a imprensa tomasse conhecimento do que acontecia “entre os muros” da construção da grande usina.
O governo estava captando financiamentos em bancos estrangeiros, que por sua vez vinham sendo pressionados por entidades defensoras dos direitos humanos a não financiarem a ditadura brasileira. As denúncias de tortura corriam pelas capitais européias e eram notícias nos principais jornais do velho mundo.
Decidido a resolver o conflito com a máxima rapidez e extremo sigilo o general Massa baixou em Foz no segundo dia da greve e do aeroporto foi direto para o Hotel Bourbon, onde já se encontravam reunidos para avaliar a situação o general Costa Cavalcanti, o capitão Roberto Helbling e o general Junot Guimarães. Nessa reunião, o general Costa Cavalcanti sugeriu que a greve fosse reprimida de forma exemplar “para acabar definitivamente com os focos comunistas” dentro de “sua obra” como ele costumava dizer. Momentos antes Helbling havia informado que recebera radiogramas dos órgãos de informações comunicando que nenhum dos grevistas era fichado por atividade política ou sindical.
O general Massa argumentou que naquele momento a repressão física estava descartada, pois a repercussão no exterior poderia desacreditar a imagem que a empresa estava construindo lá fora e prejudicar as negociações da Itaipu com organismos financeiros internacionais. Por fim foi acolhida sua proposta de demitir sumariamente todos os líderes do movimento a começar por Miguel Alcanis Gimenez, que havia se apresentado como porta-voz dos grevistas.
No dia trinta de outubro de 1975, três após o início da greve de fome, 35 operários da construtora Vila Rica foram sumariamente demitidos e enviados à suas cidades de origem. A “operação abafa” foi bem sucedida, a greve virou tabu dentro da Obra.

Arquivos queimados,
casos arquivados

– Eu não quero te matar, mas estão me obrigando.
– Mas por quê, quem está te obrigando?
Esse diálogo acontecido em 26 de fevereiro de 1979 entre o soldado da PM Floriano Ojeda e o comerciante Severino Miola foi testemunhado pelo taxista Arnoldo Petsch, e consta está em seu depoimento no inquérito aberto para apurar o assassinato do dono do Bar e Dormitório do Oeste, em Ramilândia.
Com a execução de Miola, um cidadão querido por todos em Ramilândia, aonde foi morar após pedir demissão na Prefeitura de Cascavel, foi apagada a última pista que poderia elucidar as mortes do ex-sargento da Brigada Militar Gaúcha, Alberi Vieira dos Santos e de seu irmão José Soares dos Santos.
No bar e dormitório localizado na rua principal de Ramilândia, costumava hospedar-se o ex-sargento Alberi, que foi o idealizador da guerrilha, comandada pelo coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório. Este movimento de resistência ao golpe militar que derrubou o presidente João Goulart foi deflagrado em 25 de março de 1965 e dois dias depois acabou sendo violentamente reprimido na localidade de Santa Lúcia, município de Capitão Leônidas Marques.
Na noite de 25 de março, Cardim e Alberi comandando um grupo de 19 homens partiram de Campo Novo rumo a Três Passos, aonde
chegaram na madrugada do dia seguinte. Sem encontrar resistência, assaltaram o destacamento local da Brigada Militar, apossando-se de 30 mosquetões e quatro fuzis-metralhadoras, além de 600 cartuchos. Ainda nessa madrugada, ocuparam a Rádio Difusora e divulgaram um manifesto esclarecendo os motivos do movimento. Em seguida, os guerrilheiros atravessaram o oeste de Santa Catarina e entraram no Paraná por Barracão.Ao tomarem conhecimento do movimento guerrilheiro as autoridades militares determinaram o imediato deslocamento de tropas para a região de Capitão Leônidas Marques. Naquele dia - 27 de março de 1965, o general Castello Branco se encontrava em Foz do Iguaçu, inaugurando a Ponte da Amizade, entre o Brasil e o Paraguai. A deflagração de um movimento guerrilheiro justamente no dia em que Castelo visitava a região pôs em alerta o poderoso III Exército. Cinco mil soldados foram mobilizados para combater os guerrilheiros. Às dez horas da manhã houve o primeiro confronto com as tropas do Exército na região situada entre Santa Lúcia e Lindoeste. Depois de intenso tiroteio o coronel Jefferson Cardim, o sargento Alberi e mais 23 guerrilheiros foram presos e conduzidos para o 1º Batalhão de Fronteiras, em Foz do Iguaçu. Os presos passaram por seguidas sessões de tortura que duraram uma semana e um deles, Silvano Soares dos Santos, irmão caçula de Alberi, morreu alguns dias após ter sido jogado do segundo andar do prédio do Batalhão. Quatro anos depois desses acontecimentos, em 1969, eu conheci o Alberi no Presídio do Ahú, em Curitiba, para onde eram levados os presos políticos do Paraná e Santa Catarina.
Passados outros quatro anos, em 1973, eu tive um encontro casual com Alberi no centro de Buenos Aires. Andava pela Corrientes quando avistei o Alberi conversando com Onofre Pinto, um dos fundadores e dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, uma das mais ativas organizações da esquerda armada brasileira. Entrei num café para me esconder, mas de nada adiantou, pois não demorou muito o Alberi se encostou a mim junto ao balcão e segurando o meu braço contou que estava coordenando a entrada no Brasil de um grupo de revolucionários. Revelou que tinha conhecimento que eu estava rearticulando bases na região do Alto Uruguai e que deveríamos juntar os nossos trabalhos para a realização de futuras ações.
Alberi sempre foi conversador, mas naquela tarde de janeiro de 1974, ele me surpreendeu ao quebrar as mais elementares regras de segurança. Tudo bem que eu também era da VPR, mas minhas atividades eram absolutamente compartimentadas. Depois das quedas em Recife, provocadas pelo traidor cabo Anselmo, eu e meus companheiros da Frente Sul (assim era chamado o grupo que atuava na fronteira Brasil/Argentina, no Paraná e Santa Catarina) decidimos que seríamos clandestinos inclusive em relação a organização. Nossa opção pela clandestinidade dentro da clandestinidade foi por uma questão de sobrevivência.
Sem dessa nossa disposição de romper contatos, Alberi soltou o verbo durante nosso encontro em Buenos Aires. Falou que tinha um esquema para entrar e sair do Brasil em total segurança e que a fachada legal era uma serraria em Santo Antônio do Sudoeste, fronteira seca entre o Brasil e Argentina. Após ter me convidado para conhecer sua estrutura e tê-la colocado a minha disposição pediu um novo encontro para acertar os detalhes. Marquei para as oito horas da noite do mesmo dia, mas como seguro morreu de velho eu caí fora de Buenos Aires. Depois de percorrer quase dois mil quilômetros, com três trocas de ônibus, desembarquei na tarde do dia seguinte na poeirenta rodoviária de El Sobérbio, naquela época uma pequena vila da Província de Misiones, próxima a fronteira com o Brasil.
Mais tarde, depois da anistia, fiquei sabendo que todos os membros do grupo que acompanhou o Alberi foram assassinados quando entraram no Brasil em meados de 1974. O ex-sargento da brigada militar e guerrilheiro de 65 havia se bandeado para o outro lado e conduzido os sete militantes da VPR para uma emboscada.
O único sobrevivente foi Alberi, que após a chacina foi ser fazendeiro em Rondonópolis, Mato Grosso, depois de passar uma temporada em Puerto Iguazú, Argentina e só voltou à Região Oeste quando soube da morte de seu irmão, José Soares dos Santos.
José, que tinha uma oficina mecânica na Vila Iolanda, em Foz do Iguaçu, apareceu morto em janeiro de 1977, na Estrada do Colono, que cruzava o Parque Nacional do Iguaçu, próximo ao Porto Moisés Lupion. Seu corpo estava completamente mutilado, apresentando sinais evidentes de tortura, com os olhos vazados por gravetos e castração.
Transtornado com a morte do irmão, Alberi jurou vingança. Ainda em Rondonópolis, escreveu um extenso relatório e às sete horas da manhã do dia 10 de fevereiro de 1979 partiu, dirigindo a sua Brasília, com destino a Porto Alegre. O pouco que se sabe sobre o conteúdo das 50 folhas datilografadas é que nelas ele revelava os nomes dos assassinos do irmão, relatava suas passagens por presídios e como ocorreram as negociações com os militares que acabaram transformando-o em um traidor.
No mesmo dia em que saiu de Rondonópolis, Alberi chegou a Medianeira e como já era noite e estava cansado devido a longa viagem decidiu pousar na casa do seu amigo Severino Miola, em Ramilândia. No dia seguinte o ex-sargento da Brigada Militar Gaúcha apareceu morto na estrada que liga Medianeira a Missal. Havia levado quatro tiros de pistola nove milímetros, arma privativa do Exército. No Auto de Achada de Cadáver, o delegado de Medianeira, Francisco Marcondes, relatou que nos bolsos de Alberi não foram encontrados documentos, jóias, dinheiro ou quaisquer outros papéis. O relatório que poderia elucidar um dos mais instigantes mistérios da fronteira havia sumido. As investigações do crime se arrastaram por mais de seis anos sem que se tenha chegado ao seu autor ou autores. Em seu despacho datado de 25 de fevereiro de 1985, o promotor João Péricles Goulart escreveu que tanto Alberi como seu irmão José foram vítimas de crime político, e que possivelmente teriam sido mortos por alguém interessado no silêncio dos dois.


Chorou antes de
matar por encomenda


O mesmo destino de Alberi e seu irmão José teve o comerciante Severino Miola, executado por Floriano Ojeda quinze dias após a morte do ex-
sargento. Foi no bar e dormitório do amigo e confidente que Alberi terminou de escrever o relatório que poderia fornecer pistas sobre as circunstancias e os responsáveis pelas mortes dos militantes da VPR, ocorridas em 1974. Miola morreu porque conhecia o conteúdo do relatório. Foi executado no interior de Santa Helena, no meio de uma plantação de soja, pedindo de joelhos clemência ao seu verdugo.
Nos autos que estão arquivados no Fórum de Santa Helena chama atenção o depoimento de Sueli Luiza Bogoni Miola, filha de Severino Miola, e que ajudava o pai no bar e dormitório. Conta Sueli que no período da manhã do dia 26 de fevereiro de 1979 estava dedicando-se aos afazeres normais e corriqueiros, quando por volta do meio-dia chegaram ao estabelecimento comercial os policiais Floriano Ojeda e Natalino de tal, ambos destacados na delegacia de Matelândia e que se faziam acompanhar por um professor da mesma cidade.
Os clientes sentaram a uma mesa e pediram refeição. Ainda de acordo com o depoimento de Sueli, Ojeda estava “um tanto perturbado e esquisito, tendo inclusive chorado em um canto do refeitório”.
Ao ver o soldado naquele estado, Miola passou o braço por cima do seu ombro e quis saber por que ele chorava. Ojeda respondeu que era por motivo particular e amuado puxou uma cadeira e foi sentar num canto do salão. Sueli se aproximou dele com o prato de comida, mas o soldado a repeliu e continuou de cabeça baixa, olhando fixamente para o chão.
Assim que terminou de comer Ojeda mandou o comerciante acompanhá-lo até Matelândia pois o delegado de polícia queria falar com ele. Miola achou estranho, mas mesmo assim acompanhou o soldado até um táxi que estava estacionado em frente ao estabelecimento. Não sabia que aquela seria uma viagem sem volta.
Em seu depoimento ao delegado Manoel Fernandes, o taxista Arnoldo Petsch, testemunha ocular da execução, relatou que quando chegaram numa estrada vicinal na localidade de Linha Celeste, interior de Santa Helena, Ojeda empunhou um revólver e mandou Miola descer. “Eu implorei, pedi por misericórdia ao soldado Ojeda que ele não nos matasse, pois éramos dois velhinhos e precisávamos viver. Disse que ele podia levar nosso dinheiro e o carro. Aí ele respondeu que eu seria poupado, mas o outro ele iria matar”, contou o taxista.
Petsch relatou ainda ao delegado de Ramilandia que Miola saiu do veículo, ajoelhou-se e com as mãos postas, implorou pela sua vida gritando: “Meu santo me ajuda”.
Nesse instante Floriano Ojeda deu o primeiro tiro atingindo sua vítima na altura da boca, que mesmo ferido entrou numa plantação de soja enquanto o soldado da PM corria em sua perseguição dando outros tiros. Assim que Miola caiu o assassino atirou mais uma vez atingindo o comerciante na cabeça. Em seguida pediu ao taxista que o levasse a Itacorá e de lá cruzou para o Paraguai.

2 comentários:

  1. Bem-vindo à comunidade blogueira mundial. Muito bom os textos que não nos permitem esquecer a história deste tribulado Oeste Paranaense que hoje, sem a ditadura militar, vive a ditadura da demgogia. Continue postando, grava uma entrevistinha no You Tube sobre isso e adiciona. Jackson Lima

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  2. hoje me sintomuito orgulhosa de alguem de minha familia estar na historia.muitosofrida mas com muita coragem ideal e muita inteligencia, adimiro todos que entraram nessa historia

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