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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Memorial da Ilha das Flores


Fruto de uma parceria entre a Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro  (Uerj), campus de São Gonçalo, RJ e a Marinha do Brasil, começou a funcionar desde novembro de 2012, na Ilha das Flores, situada na Baia de Guanabara, o Centro de Memória da Imigração no Brasil, um museu a céu aberto que se propõe a mostrar aos visitantes a história daquele local, onde funcionou um dos mais importantes centros de recepção e hotel de imigrantes do país, entre 1883 e 1996. O projeto recebeu aportes de recursos da FAPERJ e também da Marinha do Brasil. Visto assim, tudo bem, parece uma boa iniciativa educativa e de resgate do papel da imigração na história nacional. Nada contra. Entretanto, não se trata de resgatar a história de um lugar qualquer. O lugar em questão é a Ilha das Flores, que se transformou numa base da Marinha do Brasil, quartel-sede  à época de um Batalhão do Corpo de Fuzileiros( o Batalhão Paissandú)  e que abrigou durante a ditadura militar de 1964 a 1985 um dos mais ativos centros de interrogatórios e torturas contra presos políticos instalados pelo sistema de repressão do regime, sob as ordens do Comando da Marinha e do seu órgão de repressão política, o CENIMAR. 

Esse fato significativo, impactante e trágico não pode e não deve ser apagado ou escondido quando se quer resgatar a história daquele lugar e do nosso país. Para que assim, sejamos educativos com as novas gerações, para que se consolide verdadeiramente a institucionalidade
democrática, para que fatos como esse não se repitam.
Aliás, aquele local, além de ter servido em diferentes épocas como fazenda de produção de mandioca, centro de psicultura e outros, foi em várias ocasiões da nossa história contemporânea utilizado como presídio para encarcerar lutadores sociais, como sindicalistas e anarquistas nos albores do movimento operário do século XX, foi também utilizado como presídio na 1ª e 2ª guerras mundiais, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, recebeu prisioneiros comunistas e da Aliança Nacional Libertadora em 1935 e finalmente como centro de torturas contra combatentes da ditadura militar instalada em 1964.
É uma bela iniciativa dos pesquisadores da UERJ esse projeto de resgate da memória da imigração no nosso país. É inconteste o importante papel que as diversas levas migratórias têm na formação do nosso povo e na constituição do Brasil dos nossos dias. Entretanto, por uma trágica armadilha histórica, a Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores, que foi centro de acolhida, de abrigo para aqueles que chegavam ao Brasil em busca da esperança de uma vida melhor, transformou-se entre 1969 e 1971, num local de sofrimentos, suplícios e castigos atrozes para muitas dezenas de brasileiros que lutavam contra a ditadura e também pela esperança de um futuro melhor para o nosso povo. Faz-se, portanto, necessário e mesmo imprescindível, que no mesmo local em que funciona este Centro de Memória da Imigração, seja estabelecido um dos memoriais da resistência à ditadura, que evidencie com documentos, fotos, filmes depoimentos, registros da imprensa e outros meios e recursos museológicos que ali funcionou um dos mais cruéis centros de torturas do regime militar. Para isso é necessário trabalhar em forma colaborativa com a UERJ, que já desenvolve um projeto museológico ali, além de somar esforços das comissões de memória, verdade e justiça, Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, OAB, Comissão da Verdade, movimentos sociais, organismos de direitos humanos etc.
A Ilha das Flores, já sob o comando da Marinha do Brasil, começou a abrigar prisioneiros políticos logo depois do golpe: operários navais, líderes sindicais, militantes do PCB e outras lideranças políticas. Mas, foi a partir de 1969, com a prisão dos militantes do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) que a Marinha do Brasil e o CENIMAR instalaram definitivamente ali um verdadeiro campo de prisioneiros e centro de torturas, sofisticado e cruel, sob o comando do Capitão de Mar e Guerra Clemente José Monteiro Filho. A Ilha foi adaptada efetivamente, nos moldes de um campo de concentração, com barreiras de arame farpado, trincheiras, sacos de areia, cães adestrados, faróis de vigília, uma solitária de 3x2mts. aproximadamente, toda pintada de uma cor rosa intensa por dentro (a chamada Guarita), onde ficavam os presos que estavam sendo interrogados e torturados, um lugar especial destinado para os interrogatórios e torturas num ponto isolado da Ilha,  a Ponta dos Oitis. Prisioneiros eram obrigados a cortar seus cabelos com corte militar e a usar uniformes. Agentes do CENIMAR, da Polícia Federal e do DOPS se revezavam nos interrogatórios infindáveis: insultos, humilhações, ameaças e torturas: choques elétricos, técnicas de afogamento, o suplício do pau de arara, golpes com palmatórias, cassetetes e murros eram frequentemente usados contra os presos.
Durante os anos de 1969 a 1971, ali estiveram prisioneiros de várias organizações e partidos revolucionários, tais como:  MR8, ALN, MAR, AP, PCBR, VAR PALMARES,PCB, PC do B.
As inúmeras de núncias contra o Centro de Torturas da Ilha das Flores foram amplamente difundidas no Brasil e no exterior e se encontram registradas em documentos, filmes, fotos, matérias da imprensa, nos anais das auditorias militares, do Superior Tribunal Militar, nos registros do Arquivo Nacional e do projeto BRASIL NUNCA MAIS. Nesses registros, alguns personagens que comandaram e atuaram nesse centro de torturas foram identificados e desmascarados, como entre outros, o Capitão de Mar e Guerra Clemente José Monteiro Filho , o Capitão de Corveta Alfredo Magalhães (o agente Mike do CENIMAR), outros oficiais da Marinha e policiais do DOPS e da Polícia Federal e também o então Tenente-médico  da Marinha, o Dr.Coutinho, que se prestava a fazer avaliações do estado físico dos prisioneiros para que continuassem sendo torturados e por essa razão, em processo aberto pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro teve seu registro médico cassado.
É necessário para a história, para a consolidação democrática no Brasil, para que nunca se esqueça, para que jamais volte a acontecer, o avanço dessa luta pela instalação desses memoriais da luta contra a ditadura, como é o Memorial da Resistência em São Paulo, como deve ser a antiga sede da Polícia Central da Rua da Relação, como deve ser o DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita na Tijuca e muitos outros. E entre eles, sem dúvida,  um memorial que lembre o Centro de Torturas da Ilha das Flores.

Umberto T. de Lima


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