Rio de Janeiro, 11 de agosto de 2010.
Queridos amigos e companheiros,
Muito triste, consternado mesmo com a morte tão abrupta do nosso amigo Ricardo Alvarez, escrevo para aliviar um pouco a dor dessa perda e também para compartir com vocês o registro da minha memória sobre a bela amizade que tivemos, por mais de 45 anos, lembranças marcantes das nossas vidas.
Estávamos naquela provinciana e simpática Niterói dos
anos 60, onde se andava a pé, de "troleibus" ou bicicleta por
toda parte, a qualquer hora do dia ou da noite e em que para vir ao Rio tinha
de ser de barca. Num tempo que era botar um calção e pés descalços ir dar um
mergulho na bela praia de Icaraí, ali mesmo do lado de casa e ficar na
areia conversando com os amigos.
Tínhamos todos um sentimento de urgência pela vida, queríamos
viver tudo muito intensamente, experimentar todas as emoções, o amor, os
desafios.... Éramos todos jovens, muito jovens, entre 16 e 20 e poucos anos a
maioria. Tínhamos um sonho enorme que ardia em nossos corações, que iluminava
nossas mentes, brilhava em nossos olhos, o de mudar o Brasil, transformar o
mundo, construir uma sociedade mais justa e igualitária. A generosidade, a
capacidade de entrega, a audácia e uma grande curiosidade cultural por tudo que
se passava no mundo, na política, nas artes, na literatura, na filosofia etc,
eram as marcas daquela geração nascida nos anos 40 e começo dos 50. Ricardo,
aliás o Kid (apelido familiar carinhoso que rapidamente se espalhou entre os
amigos com tanta força que passou praticamente a ser o seu nome mais
conhecido), era um desses jovens.
Conheci Ricardo em 1965, através do queridíssimo amigo e
companheiro Aluizio Palmar. Tínhamos 17 anos, eu e o Kid, Aluízio era um pouco
mais velho. Já éramos militantes do PCB no movimento secundarista e Aluízio era
membro da Seção Juvenil Estadual do Partido e trabalhava na reorganização da
estrutura partidária em Niterói, muito afetada pelo golpe militar de 1964.
Fundamos juntos a organização de base do PCB no Colégio Batista e a chamamos de
base Astrogildo Pereira, em homenagem aquele brilhante intelectual comunista
que creio faleceu naquele ano, após ter sido preso. Éramos 5 membros
inicialmente, Ricardo, eu, Aluízio, Getúlio Gouveia (também já falecido),
Aquiles (MPB 4) e outro companheiro que não me lembro o nome.
Umberto Trigueiros de Lima
Mas, a primeira tarefa da base Astrogildo Pereira foi um
desastre total. Fomos encarregados uma noite, Ricardo, eu e um companheiro
chamado Cassio (aliás o Fuinha) de vigiar um dos acessos do prédio inacabado da
sede da União Fluminense de Estudantes (chamado Esqueleto) para prevenir a
chegada da polícia, enquanto acontecia um Congresso lá dentro. Nosso posto
de observação ficava sobre uma lage meio encoberta por um matagal, de onde
receberíamos um sinal de alerta de outros vigias postados mais abaixo
na rua, caso a polícia se aproximasse. Acontece que os vigias da rua ficaram
muito interessados em saber dos detalhes da batida de um automóvel com um
ônibus numa esquina próxima e abandonaram o posto. Resultado, fomos
surpreendidos pelos farois do jipe da polícia que costumava fazer rondas no
local, que segundo eles era um ponto de encontro de maconheiros. Começaram
então a nos dar uma dura e nós naquela época todos imbuidos da militância,
caretíss imos, não esperávamos por essa. Fuinha não suportou a humilhação
e protestou meio chorando "...maconheiro é o caralho, a gente é comunista
porra." Final da história, cana é claro, um susto de lascar, mas fomos
soltos poucas horas depois, pois não tínhamos nada encima e nem
antecedentes. Fuinha pediu demissão da militância em caráter irrevogável.
Ricardo ficou puto com a burrice do Fuinha e queria encher os vigilantes da rua
de porrada.
Participamos juntos com outros companheiros da reorganização do
Comitê Secundarista do Partido e no ano seguinte do Comitê Universitário.
Ricardo foi estudar Economia, eu e Aluízio Ciências
Sociais.
Organizávamos grupos de estudos de marxismo e de filosofia,
fazíamos pichações contra a ditadura pelos muros da cidade de madrugada,
criávamos cine clubes para exibir filmes do neo-realismo italiano, da nouvelle
vague francesa, além dos soviéticos. Participávamos dos grêmios
estudantis, dos diretórios acadêmicos das faculdades, editávamos, imprimíamos e
distribuíamos jornaizinhos e panfletos mimeografados (será que alguém
ainda se lembra o que é um mimeógrafo?), organizávamos manifestações.
Realizávamos várias atividades junto com companheiros das bases de operários
navais, área onde o PCB tinha forte presença. Apolônio de Carvalho era o
Secretário Estadual do Partido (um luxo). Pouco a pouco fomos nos somando em
ações, amizade e companheirismo com tantos outros jovens como nós, construindo
com alguns uma solidariedade e carinho profundos que durariam para o resto das
nossas vidas: Aluízio, Ricardo, Marta, Ziléia, Rô, Rogério, Luiz Carlo s, Bill,
Iná, Nielsen, Zenaide, Cândida...,só para citar alguns, pois muitos outros
foram se agregando.
Mas a vida não era só militância, tinha muita festa, paixões
avassaladoras, a descoberta do sexo, do amor livre, a mistura das
nossas convicções marxistas com o existencialismo, as inesquecíveis
saídas no Land Rover do seu Damaso (pai do Ricardo), com o Kid ao volante.
Sucesso garantido entre as garotas.
Bem, a casa do Damaso e Judith, pais do Ricardo
e Marta, ali no bairro do Ingá, era uma verdadeira ilha de acolhimento
para todos nós. Era uma família de comunistas históricos. Ricardo e Marta
eram netos pelo lado materno de Pedro Motta Lima, jornalista, membro
do Comitê Central, que àquela época vivia na Checoeslováquia parece.,Era
editor da revista internacional Paz, Pogresso e Socialismo e que logo
depois viria a falecer num acidente aéreo. Ali podíamos ter mais liberdade,
conversar sobre quase todos os assuntos e até fazer festas no terraço.
Possibilidades que a maioria de nós não tinha com as nossas próprias famílias
naquele tempo.
Ricardo transitava entre as relações com o Partido e os
companheiros de militância e outros grupos mais alternativos, que eram
também de esquerda, ou simpatizantes, mas se preocupavam mais com cultura,
música, teatro, levavam altos papos filosóficos, eram muito próximos do
existencialismo, queimavam um fuminho de vez em quando e eram conhecidos
pejorativamente pelos militantes mais engajados como nós como a "turma do
nada". Ricardo não se importava com isso, tinha muitos amigos ali. Naquele
tempo, Kid tinha assim uma postura meio militante, meio hippie. Tinha deixado
crescer a barba, andava de sandálias franciscanas surradas, camisas cáqui do
tipo militar, ou aquelas azuis de marinheiro, era bem magro e importante, tinha
cabelo.
Ricardo era mais desinibido que a maioria de nós e fazia sucesso
com as meninas, tinha uma namorada atrás da outra.
Por volta de 1967, o Partidão estava envolto em discussões sobre
os caminhos a tomar diante da ditadura, o que levaria ao aprofundamento de
divergências e ao rompimento de muitos militantes. Nosso grupo em Niterói,
junto com muitos outros em vários estados saímos do Partido, começávamos
a discutir a luta armada e logo em seguida a trabalhar na sua organização.
Ricardo nos acompanhou durante um tempo, mas depois se afastou.
Não estava muito seguro das nossas opções e já tinha começado a trabalhar
como repórter, primeiro no Jornal dos Sports, abraçando assim a carreira de
jornalista que levaria adiante como ótimo profissional por toda a vida.
Voltaria à militância no final dos anos 70, novamente no PCB.
Fez uma bela trajetória como jornalista. Além do Jornal dos
Sports, trabalhou na revista Portos & Navios, no Correio da Manhã, onde
participou da cobertura da Copa de 70, em O Globo, em O Dia, numa revista
técnica em São Paulo, Editora Rio Gráfica, TV Globo (onde foi chefe de
reportagem do esporte e participou da cobertura das Olimpíadas de Seul) e
também na TV Manchete.
No final dos anos 60, não sei exatamente o ano, iniciaria a
longa lista dos seus casamentos (acho que uns 6, fora os namoros). Ila era o
nome dela, uma argentina. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, Ricardo
não era tão volúvel assim. Ao contrário, com algumas exceções, seus casamentos
duraram muitos anos e deles nasceram Fernando em 1973, com Walquiria e Marina
em 1985, com Mônica, de quem me tornei grande amigo. Outra coisa interessante,
a maioria das suas companheiras já tinham filhos de outros casamentos e Ricardo
foi estabelecendo relações profundas com essas crianças, adolescentes, ou
jovens, como se fosse seu próprio pai. Apesar de ser do tipo meio durão,
difícil de se abrir, desenvolveu uma grande capacidade de criar uma linha
direta e de confiança com os adolescentes e jovens, com todos os nossos filhos.
Ligava para saber notícias do meu filho André, de quem gostava muito, sempre
perguntava por ele quando nos encontrávamos e era assim com todos os outros
amigos. A simpatia era recíproca, a garotada também curtia muito ele.
No final de 1967, o grupo de militantes de Niterói passava à
clandestinidade e em 1968 nascia o MR8, com algumas ramificações no Rio, São
Paulo, Brasília, Paraná e contatos com outras organizações de esquerda em ação.
Entre fevereiro e julho de 1969 fomos quase todos presos.
Ricardo não foi citado no processo e não foi preso, mas Marta sua irmã sim. A
longa noite do Brasil estava apenas começando: torturas, atrocidades, prisões,
desaparecimentos, assassinatos, julgamentos sumários por tribunais militares...
No começo de 1969, eu estava preso na Fortaleza de Santa Cruz,
em Niterói, que funcionava como Presídio do Exército, quando para minha
surpresa vejo Ricardo passeando no pátio onde os presos tomávamos banho de sol.
Cruzamos olhares, um leve aceno de cabeça. O MR8 tinha pedido a Ricardo,
que tinha servido o Exército naquele quartel, para aproveitando o Dia do
Reservista fazer uma visita lá para tentar um contato comigo. A idéia era ver a
possibilidade de me dar algum remédio para que eu fosse levado a um hospital e
então seria feita uma ação de resgate. Não deu certo, não conseguimos nos
aproximar e uns três meses depois o MR8 começava a ser esmagado pela repressão.
Me lembro de Ricardo, como familiar de Marta, comparecendo a várias das nossas
audiências e sessões de julgamento na Auditoria da Marinha.
Fiquei quase dois anos na prisão e depois fui banido.
Foram mais de 9 anos de exílio, Chile, Cuba, Suécia. Durante esse tempo
perdi completamente o contato com os companheiros que tinham ficado no Brasil,
com Ricardo inclusive. Muitos estavam presos, outros na clandestinidade,
alguns foram assassinados, uns tantos tocavam a vida da maneira que era
possível. Mas, nós que estávamos no exílio, principalmente os banidos, tínhamos
que ter muito cuidado em fazer contato aqui com pessoas fora do nosso
círculo familiar. Era muito perigoso para eles.
Regressei ao Brasil, em maio de 1980, depois da Anistia, já
casado com minha companheira Gabriela e com meu filho André com 8 meses.
Foi nessa época que descobri como era bonita e que força tinha aquela amizade e
companheirismo que tínhamos construído anos atrás. Fui morar na casa do meu pai
em Niterói e recebi apoio de muitos amigos, mas no começo não tive nenhum
contato com Ricardo.
Eu estava correndo atrás de trabalho, tinha 32 anos, precisava
conseguir algo rápido. Um belo dia, estou em casa e me liga um companheiro, o
Cid Benjamim, com quem tinha compartido o exílio, no Chile, em Cuba, na Suécia.
Me disse que tinha uma vaga de frila numa editora em que estava trabalhando,
que o salário era pouco, mas dava para quebrar um galho. Era a Editora Rio
Gráfica, que pertencia ao grupo de O Globo e ficava no Catumbi, no Rio de
Janeiro. Topei no ato, anotei o endereço e no dia seguinte fui lá para fazer
uma entrevista com o editor. Cheguei meio desconfiado e o Cid foi me apresentar
ao Chefe. O cara veio andando em minha direção, rindo. Um sujeito careca, um
pouco gordo, de barba. No começo não o reconheci, mas quando começou a falar
comigo não havia dúvida. Tinha reencontrado meu grande amigo Kid. Reencontro
que selamos com um forte abraço, para espanto do resto da redação. O emprego
era meu e fomos comemorar com uma cerveja gelada no bar do Chico, bem
em frente. Aliás, botequim do Chico que se tornou um marco da nossa
temporada na Rio Gráfica. Era um autêntico pé sujo da Rua Itapirú, no Catumbi,
onde toda sexta-feira depois do trabalho batiamos ponto sem falta, Ricardo, eu,
a turma da redação, gente dos fotolitos, pessoal da administração. Enquanto
rolavam caixas e caixas de cerveja jogávamos conversa fora, repassávamos a
vida, as angústias, política, sindicato e etc. Ali, eu ia me
"empapando" de novo de Brasil, depois do longo exílio.
Nessa época Ricardo era da diretoria do Sindicato dos
Jornalistas do Rio de Janeiro. Tinha retomado a sua militância, era bastante
atuante no movimento sindical. Participara ativamente do Movimento Unidade e
Ação que resgatou o Sindicato dos Jornalistas das mãos dos pelegos, tinha sido
eleito como Tesoureiro no segundo mandato da chapa presidida pelo Caó (Carlos
Alberto de Oliveira) e atuava também na Comissão Pró-Cut (pela criação de uma
central sindical única). Estava casado com Gilda Oswaldo Cruz, uma pianista
virtuosa, com formação nos melhores conservatórios da Europa. Moravam num
apartamento antigo e enorme no bairro do Flamengo, com um fantástico piano de
cauda no meio da sala, onde se organizavam festas memoráveis, com gente saindo
pelo ladrão, naquele momento em que a abertura política ia de vento em popa e
se vislumbrava o fim da ditadura. Bem, no meio desse turbilhão o casamento com
Gilda foi pro espaço e Ricardo começou a namorar Mônica Horta, jornalista,
petista roxa então, que militava também no movimento sindical e com quem o Kid
editava o jornal da Comissão Pró-Cut. Algum tempo depois se casariam e
passariam muitos anos juntos
Trabalhando na Rio Gráfica, comecei também a participar do
movimento sindical dos jornalistas. Em 1984, nova eleição para a diretoria e
Ricardo estava se afastando da diretoria e acabou me convencendo a participar
da chapa encabeçada por José Carlos Monteiro, como Secretário Geral.
Mônica também estava na diretoria, como representante dos jornalistas da TV
Globo. Ele participou ativamente da campanha. Ganhamos a eleição.
Terminado o mandato sindical, Ricardo foi demitido da Rio
Gráfica, mas conseguiu articular com ajuda de Mônica e de outros profissionais
que o conheciam muito bem a sua ida para a TV Globo. Eu fiquei ainda uns 3 anos
mais na Rio Gráfica.
Desse tempo ficou a lembrança muito gostosa de nossas idas ao
sítio de Mônica, perto de Petrópolis, em feriados e finais de semana. Sempre
com muitos amigos, com toda a criançada, nossos e agregados. Um lugar lindo,
super acolhedor. A gente virando noite, ou lagarteando nas pedras do riacho de
águas transparentes, conversando, repassando a vida, sonhando, discutindo
o futuro, as crianças crescendo...
Continuamos pela vida, nos encontrando sempre. às vezes em minha
casa, outras na casa dele, em casa de amigos comuns, pelos bares da cidade,
discutindo nossas vidas, cultura, o Brasil, nossos sonhos, amarguras e
alegrias.
Ricardo ficaria um longo tempo ainda na TV Globo, depois foi
para a TV Manchete que acabou falindo. Decidiu então se aposentar, a meu ver um
pouco prematuramente e ficou um tanto com um gosto amargo da vida. No
meio do caminho ainda teve um casamento com uma moça chamada Inês, que também
tinha uma filha. Por fim encontrou Helena (com mais 2 filhos), que conheceu
através de Luiz Carlos (Bocão), nosso amigo e companheiro inseparável desde os
anos 60. Foi sua companheira por 11 anos. Esteve com ele até o fim, nos seus
momentos mais críticos, com firmeza, paciência e muito carinho. Conquistou para
sempre a todos nós.
Seu último ano de vida foi muito difícil, com sua saúde se
deteriorando rapidamente a olhos vistos e ele, casca grossa como sempre, sem
querer dar o braço a torcer, não dando muito bola para o azar. Era um
tipo ao mesmo tempo teimoso como uma mula, mas também agregador, pão duro
convicto e generoso como poucos. Era de temperamento forte e explosivo e
ao mesmo tempo muito carinhoso. Tricolor irritante e eu flamenguista histórico.
Gostava de provocar as feministas com as piadas machistas mais horríveis.
Sempre piadista, mas não perdia a piada, nem o amigo. Assim foi meu amigo Kid,
que nos deixou outro dia. Levou com ele uns pedacinhos da gente, das nossa
histórias, da memória das nossa vidas. Deixou marcado para sempre em nossa
lembranças o traço da sua passagem. Mas, quando olhamos para o lado e vemos os
rostos e sentimos a energia dos jovens que nos rodeiam, é como se nos dissessem
sem palavras, nós já somos grandes, temos força para construir algo novo, para
continuar sonhando um mundo melhor. Valeu a pena. Vida que segue!
Umberto Trigueiros de Lima
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