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terça-feira, 26 de maio de 2015

HOMENAGEM AO COMPANHEIRO RICARDO ALVAREZ


Rio de Janeiro, 11 de agosto de 2010.
 
Queridos amigos e companheiros,
 
Muito triste, consternado mesmo com a morte tão abrupta do nosso amigo Ricardo Alvarez, escrevo para aliviar um pouco a dor dessa perda e também para compartir com vocês o registro da minha memória sobre a bela amizade que tivemos, por mais de 45 anos, lembranças marcantes das nossas vidas.

Estávamos naquela provinciana e simpática Niterói dos anos 60, onde se andava a pé, de "troleibus" ou bicicleta por toda parte, a qualquer hora do dia ou da noite e em que para vir ao Rio tinha de ser de barca. Num tempo que era botar um calção e pés descalços ir dar um mergulho na bela praia de Icaraí, ali mesmo do lado de casa e ficar na areia conversando com os amigos. 

Tínhamos todos um sentimento de urgência pela vida, queríamos viver tudo muito intensamente, experimentar todas as emoções, o amor, os desafios.... Éramos todos jovens, muito jovens, entre 16 e 20 e poucos anos a maioria. Tínhamos um sonho enorme que ardia em nossos corações, que iluminava nossas mentes, brilhava em nossos olhos, o de mudar o Brasil, transformar o mundo, construir uma sociedade mais justa e igualitária. A generosidade, a capacidade de entrega, a audácia e uma grande curiosidade cultural por tudo que se passava no mundo, na política, nas artes, na literatura, na filosofia etc, eram as marcas daquela geração nascida nos anos 40 e começo dos 50. Ricardo, aliás o Kid (apelido familiar carinhoso que rapidamente se espalhou entre os amigos com tanta força que passou praticamente a ser o seu nome mais conhecido), era um desses jovens.

Conheci Ricardo em 1965, através do queridíssimo amigo e companheiro Aluizio Palmar. Tínhamos 17 anos, eu e o Kid, Aluízio era um pouco mais velho. Já éramos militantes do PCB no movimento secundarista e Aluízio era membro da Seção Juvenil Estadual do Partido e trabalhava na reorganização da estrutura partidária em Niterói, muito afetada pelo golpe militar de 1964. Fundamos juntos a organização de base do PCB no Colégio Batista e a chamamos de base Astrogildo Pereira, em homenagem aquele brilhante intelectual comunista que creio faleceu naquele ano, após ter sido preso. Éramos 5 membros inicialmente, Ricardo, eu, Aluízio, Getúlio Gouveia (também já falecido), Aquiles (MPB 4) e outro companheiro que não me lembro o nome.  


Mas, a primeira tarefa da base Astrogildo Pereira foi um desastre total. Fomos encarregados uma noite, Ricardo, eu e um companheiro chamado Cassio (aliás o Fuinha) de vigiar um dos acessos do prédio inacabado da sede da União Fluminense de Estudantes (chamado Esqueleto) para prevenir a chegada da polícia, enquanto acontecia um Congresso lá dentro. Nosso posto de observação ficava sobre uma lage meio encoberta por um matagal, de onde receberíamos um sinal de alerta de outros vigias postados mais abaixo na rua, caso a polícia se aproximasse. Acontece que os vigias da rua ficaram muito interessados em saber dos detalhes da batida de um automóvel com um ônibus numa esquina próxima e abandonaram o posto. Resultado, fomos surpreendidos pelos farois do jipe da polícia que costumava fazer rondas no local, que segundo eles era um ponto de encontro de maconheiros. Começaram então a nos dar uma dura e nós naquela época todos imbuidos da militância, caretíss imos, não esperávamos por essa. Fuinha não suportou a humilhação e protestou meio chorando "...maconheiro é o caralho, a gente é comunista porra." Final da história, cana é claro, um susto de lascar, mas fomos soltos poucas horas depois, pois não tínhamos nada encima e nem antecedentes. Fuinha pediu demissão da militância em caráter irrevogável. Ricardo ficou puto com a burrice do Fuinha e queria encher os vigilantes da rua de porrada.

Participamos juntos com outros companheiros da reorganização do Comitê Secundarista do Partido e no ano seguinte do Comitê Universitário. Ricardo foi estudar Economia, eu e Aluízio Ciências Sociais.     

Organizávamos grupos de estudos de marxismo e de filosofia, fazíamos pichações contra a ditadura pelos muros da cidade de madrugada, criávamos cine clubes para exibir filmes do neo-realismo italiano, da nouvelle vague francesa, além dos soviéticos. Participávamos dos grêmios estudantis, dos diretórios acadêmicos das faculdades, editávamos, imprimíamos e distribuíamos jornaizinhos e panfletos mimeografados (será que alguém ainda se lembra o que é um mimeógrafo?), organizávamos manifestações. Realizávamos várias atividades junto com companheiros das bases de operários navais, área onde o PCB tinha forte presença. Apolônio de Carvalho era o Secretário Estadual do Partido (um luxo). Pouco a pouco fomos nos somando em ações, amizade e companheirismo com tantos outros jovens como nós, construindo com alguns uma solidariedade e carinho profundos que durariam para o resto das nossas vidas: Aluízio, Ricardo, Marta, Ziléia, Rô, Rogério, Luiz Carlo s, Bill, Iná, Nielsen, Zenaide, Cândida...,só para citar alguns, pois muitos outros foram se agregando.

Mas a vida não era só militância, tinha muita festa, paixões avassaladoras, a descoberta do sexo, do amor livre, a mistura das nossas convicções marxistas com o existencialismo, as inesquecíveis saídas no Land Rover do seu Damaso (pai do Ricardo), com o Kid ao volante. Sucesso garantido entre as garotas.

Bem, a casa do Damaso e Judith, pais do Ricardo e Marta, ali no bairro do Ingá, era uma verdadeira ilha de acolhimento para todos nós. Era uma família de comunistas históricos. Ricardo e Marta eram netos pelo lado materno de Pedro Motta Lima, jornalista, membro do Comitê Central, que àquela época vivia na Checoeslováquia parece.,Era editor da revista internacional Paz, Pogresso e Socialismo e que logo depois viria a falecer num acidente aéreo. Ali podíamos ter mais liberdade, conversar sobre quase todos os assuntos e até fazer festas no terraço. Possibilidades que a maioria de nós não tinha com as nossas próprias famílias naquele tempo.

Ricardo transitava entre as relações com o Partido e os companheiros de militância e outros grupos mais alternativos, que eram também de esquerda, ou simpatizantes, mas se preocupavam mais com cultura, música, teatro, levavam altos papos filosóficos, eram muito próximos do existencialismo, queimavam um fuminho de vez em quando e eram conhecidos pejorativamente pelos militantes mais engajados como nós como a "turma do nada". Ricardo não se importava com isso, tinha muitos amigos ali. Naquele tempo, Kid tinha assim uma postura meio militante, meio hippie. Tinha deixado crescer a barba, andava de sandálias franciscanas surradas, camisas cáqui do tipo militar, ou aquelas azuis de marinheiro, era bem magro e importante, tinha cabelo.

Ricardo era mais desinibido que a maioria de nós e fazia sucesso com as meninas, tinha uma namorada atrás da outra.

Por volta de 1967, o Partidão estava envolto em discussões sobre os caminhos a tomar diante da ditadura, o que levaria ao aprofundamento de divergências e ao rompimento de muitos militantes. Nosso grupo em Niterói, junto com muitos outros em vários estados saímos do Partido, começávamos a discutir a luta armada e logo em seguida a trabalhar na sua organização. 

Ricardo nos acompanhou durante um tempo, mas depois se afastou. Não estava muito seguro das nossas opções e já tinha  começado a trabalhar como repórter, primeiro no Jornal dos Sports, abraçando assim a carreira de jornalista que levaria adiante como ótimo profissional por toda a vida. Voltaria à militância no final dos anos 70, novamente no PCB.

Fez uma bela trajetória como jornalista. Além do Jornal dos Sports, trabalhou na revista Portos & Navios, no Correio da Manhã, onde participou da cobertura da Copa de 70, em O Globo, em O Dia, numa revista técnica em São Paulo, Editora Rio Gráfica, TV Globo (onde foi chefe de reportagem do esporte e participou da cobertura das Olimpíadas de Seul) e também na TV Manchete.

No final dos anos 60, não sei exatamente o ano, iniciaria a longa lista dos seus casamentos (acho que uns 6, fora os namoros). Ila era o nome dela, uma argentina. Mas, ao contrário do que se possa imaginar, Ricardo não era tão volúvel assim. Ao contrário, com algumas exceções, seus casamentos duraram muitos anos e deles nasceram Fernando em 1973, com Walquiria e Marina em 1985, com Mônica, de quem me tornei grande amigo. Outra coisa interessante, a maioria das suas companheiras já tinham filhos de outros casamentos e Ricardo foi estabelecendo relações profundas com essas crianças, adolescentes, ou jovens, como se fosse seu próprio pai. Apesar de ser do tipo meio durão, difícil de se abrir, desenvolveu uma grande capacidade de criar uma linha direta e de confiança com os adolescentes e jovens, com todos os nossos filhos. Ligava para saber notícias do meu filho André, de quem gostava muito, sempre perguntava por ele quando nos encontrávamos e era assim com todos os outros amigos. A simpatia era recíproca, a garotada também curtia muito ele.

No final de 1967, o grupo de militantes de Niterói passava à clandestinidade e em 1968 nascia o MR8, com algumas ramificações no Rio, São Paulo, Brasília, Paraná e contatos com outras organizações de esquerda em ação.

Entre fevereiro e julho de 1969 fomos quase todos presos. Ricardo não foi citado no processo e não foi preso, mas Marta sua irmã sim. A longa noite do Brasil estava apenas começando: torturas, atrocidades, prisões, desaparecimentos, assassinatos, julgamentos sumários por tribunais militares...

No começo de 1969, eu estava preso na Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói, que funcionava como Presídio do Exército, quando para minha surpresa vejo Ricardo passeando no pátio onde os presos tomávamos banho de sol. Cruzamos olhares, um leve aceno de cabeça. O MR8 tinha pedido a Ricardo, que tinha servido o Exército naquele quartel, para aproveitando o Dia do Reservista fazer uma visita lá para tentar um contato comigo. A idéia era ver a possibilidade de me dar algum remédio para que eu fosse levado a um hospital e então seria feita uma ação de resgate. Não deu certo, não conseguimos nos aproximar e uns três meses depois o MR8 começava a ser esmagado pela repressão. Me lembro de Ricardo, como familiar de Marta, comparecendo a várias das nossas audiências e sessões de julgamento na Auditoria da Marinha.

Fiquei quase dois anos na prisão e depois fui banido. Foram mais de 9 anos de exílio, Chile, Cuba, Suécia. Durante esse tempo perdi completamente o contato com os companheiros que tinham ficado no Brasil, com Ricardo inclusive. Muitos estavam presos, outros na clandestinidade, alguns foram assassinados, uns tantos tocavam a vida da maneira que era possível. Mas, nós que estávamos no exílio, principalmente os banidos, tínhamos que ter muito cuidado em fazer contato aqui com pessoas fora do nosso círculo familiar. Era muito perigoso para eles.

Regressei ao Brasil, em maio de 1980, depois da Anistia, já casado com minha companheira Gabriela e com meu filho André com 8 meses. Foi nessa época que descobri como era bonita e que força tinha aquela amizade e companheirismo que tínhamos construído anos atrás. Fui morar na casa do meu pai em Niterói e recebi apoio de muitos amigos, mas no começo não tive nenhum contato com Ricardo. 

Eu estava correndo atrás de trabalho, tinha 32 anos, precisava conseguir algo rápido. Um belo dia, estou em casa e me liga um companheiro, o Cid Benjamim, com quem tinha compartido o exílio, no Chile, em Cuba, na Suécia. Me disse que tinha uma vaga de frila numa editora em que estava trabalhando, que o salário era pouco, mas dava para quebrar um galho. Era a Editora Rio Gráfica, que pertencia ao grupo de O Globo e ficava no Catumbi, no Rio de Janeiro. Topei no ato, anotei o endereço e no dia seguinte fui lá para fazer uma entrevista com o editor. Cheguei meio desconfiado e o Cid foi me apresentar ao Chefe. O cara veio andando em minha direção, rindo. Um sujeito careca, um pouco gordo, de barba. No começo não o reconheci, mas quando começou a falar comigo não havia dúvida. Tinha reencontrado meu grande amigo Kid. Reencontro que selamos com um forte abraço, para espanto do resto da redação. O emprego era meu e fomos comemorar com uma cerveja gelada no bar do Chico, bem em frente. Aliás, botequim do Chico que se tornou um marco da nossa temporada na Rio Gráfica. Era um autêntico pé sujo da Rua Itapirú, no Catumbi, onde toda sexta-feira depois do trabalho batiamos ponto sem falta, Ricardo, eu, a turma da redação, gente dos fotolitos, pessoal da administração. Enquanto rolavam caixas e caixas de cerveja jogávamos conversa fora, repassávamos a vida, as angústias, política, sindicato e etc. Ali, eu ia me "empapando" de novo de Brasil, depois do longo exílio.

Nessa época Ricardo era da diretoria do Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro. Tinha retomado a sua militância, era bastante atuante no movimento sindical. Participara ativamente do Movimento Unidade e Ação que resgatou o Sindicato dos Jornalistas das mãos dos pelegos, tinha sido eleito como Tesoureiro no segundo mandato da chapa presidida pelo Caó (Carlos Alberto de Oliveira) e atuava também na Comissão Pró-Cut (pela criação de uma central sindical única). Estava casado com Gilda Oswaldo Cruz, uma pianista virtuosa, com formação nos melhores conservatórios da Europa. Moravam num apartamento antigo e enorme no bairro do Flamengo, com um fantástico piano de cauda no meio da sala, onde se organizavam festas memoráveis, com gente saindo pelo ladrão, naquele momento em que a abertura política ia de vento em popa e se vislumbrava o fim da ditadura. Bem, no meio desse turbilhão o casamento com Gilda foi pro espaço e Ricardo começou a namorar Mônica Horta, jornalista, petista roxa então, que militava também no movimento sindical e com quem o Kid editava o jornal da Comissão Pró-Cut. Algum tempo depois se casariam e passariam muitos anos juntos

Trabalhando na Rio Gráfica, comecei também a participar do movimento sindical dos jornalistas. Em 1984, nova eleição para a diretoria e Ricardo estava se afastando da diretoria e acabou me convencendo a participar da chapa encabeçada por José Carlos Monteiro, como Secretário Geral. Mônica também estava na diretoria, como representante dos jornalistas da TV Globo. Ele participou ativamente da campanha. Ganhamos a eleição.

Terminado o mandato sindical, Ricardo foi demitido da Rio Gráfica, mas conseguiu articular com ajuda de Mônica e de outros profissionais que o conheciam muito bem a sua ida para a TV Globo. Eu fiquei ainda uns 3 anos mais na Rio Gráfica.

Desse tempo ficou a lembrança muito gostosa de nossas idas ao sítio de Mônica, perto de Petrópolis, em feriados e finais de semana. Sempre com muitos amigos, com toda a criançada, nossos e agregados. Um lugar lindo, super acolhedor. A gente virando noite, ou lagarteando nas pedras do riacho de águas transparentes, conversando, repassando a vida, sonhando, discutindo o futuro, as crianças crescendo...

Continuamos pela vida, nos encontrando sempre. às vezes em minha casa, outras na casa dele, em casa de amigos comuns, pelos bares da cidade, discutindo nossas vidas, cultura, o Brasil, nossos sonhos, amarguras e alegrias.

Ricardo ficaria um longo tempo ainda na TV Globo, depois foi para a TV Manchete que acabou falindo. Decidiu então se aposentar, a meu ver um pouco prematuramente e ficou um tanto com um gosto amargo da vida. No meio do caminho ainda teve um casamento com uma moça chamada Inês, que também tinha uma filha. Por fim encontrou Helena (com mais 2 filhos), que conheceu através de Luiz Carlos (Bocão), nosso amigo e companheiro inseparável desde os anos 60. Foi sua companheira por 11 anos. Esteve com ele até o fim, nos seus momentos mais críticos, com firmeza, paciência e muito carinho. Conquistou para sempre a todos nós.

Seu último ano de vida foi muito difícil, com sua saúde se deteriorando rapidamente a olhos vistos e ele, casca grossa como sempre, sem querer dar o braço a torcer, não dando muito bola para o azar. Era um tipo ao mesmo tempo teimoso como uma mula, mas também agregador, pão duro convicto e generoso como poucos. Era de temperamento forte e explosivo e ao mesmo tempo muito carinhoso. Tricolor irritante e eu flamenguista histórico. Gostava de provocar as feministas com as piadas machistas mais horríveis. Sempre piadista, mas não perdia a piada, nem o amigo. Assim foi meu amigo Kid, que nos deixou outro dia. Levou com ele uns pedacinhos da gente, das nossa histórias, da memória das nossa vidas. Deixou marcado para sempre em nossa lembranças o traço da sua passagem. Mas, quando olhamos para o lado e vemos os rostos e sentimos a energia dos jovens que nos rodeiam, é como se nos dissessem sem palavras, nós já somos grandes, temos força para construir algo novo, para continuar sonhando um mundo melhor. Valeu a pena. Vida que segue!


Umberto Trigueiros de Lima

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