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segunda-feira, 13 de abril de 2015

NA MÁQUINA DO TEMPO E DE VOLTA PARA O FUTURO

Na máquina do tempo e de volta para o futuro
A intensidade do viver, a emoção, o sentimento profundo, o deslumbramento diante de uma descoberta não importa de que tamanho ela seja, talvez estes sejam os elementos que componham o bálsamo da existência e deem mesmo sentido a ela. Afinal, como disse Charles Chaplin, a vida é como uma peça de teatro que não permite ensaios e por isso é preciso cantar, chorar, dançar, rir e viver intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. Pois então, na terça-feira, dia 31 de março de 2015, eu e alguns queridos amigos e companheiros de tempos imemoriais, Luiz Carlos Sousa Santos,  Iná Meireles, ele economista e ela médica, ambos formados pela UFF, ex- militantes do antigo MR 8 e ex-presos políticos e ainda, Edson Benigno, engenheiro, também graduado pela UFF e atualmente professor daquela Universidade e ex-militante da Ação Popular, presidente do DCE da UFF em 1968 (a quem não tinha o prazer de encontrar faziam  46 anos, desde o dia que nos vimos pela última vez na prisão do Forte Rio Branco em Niterói, em 1969) fomos ao campus da UFF, convidados a dar nosso testemunho num evento de “descomemoração” do golpe de 1964, de defesa da democracia e de homenagem aos estudantes daquela Universidade que à época se destacaram na luta contra a ditadura. O ato foi organizado pelo DCE Fernando Santa Cruz, da UFF, Instituto de Pedagogia, Comissão Municipal da Verdade de Niterói e contou também com a participação da Comissão Estadual da Verdade, na pessoa do advogado Wadih Damous, ex-presidente da OAB-RJ. E assim nos vimos sentados numa mesa, diante de um auditório com seguramente entre 300 a 400 pessoas. Superlotado de jovens estudantes, mas também com a presença de muitos professores, com gente “saindo pelo ladrão”, como se diz. Pessoas sentadas no chão e em pé em todos os cantos do lugar. Uma assistência viva, atenta, que permaneceu ali até tarde da noite, sem arredar pé, ouvindo nossos depoimentos.
Foi extremamente tocante para todos nós viver aquilo, imagino que cada um se viu ali diante de um filme da sua própria vida, se imaginando no auditório há quase 50 anos atrás, mas estando na tela agora, ali, naquele momento. Para mim foi uma emoção perturbadora. Me senti como dentro de uma máquina do tempo, ouvindo desde a minha memória os ecos das salas de aulas, dos corredores, das reuniões, das assembleias, das manifestações do passado, das vozes e rostos perdidos daqueles garotos e garotas e da minha própria, escondidas no fio desenrolado dos anos que se foram. Lembranças do convívio criativo daquela juventude, tão cheia de sonhos, ideais, esperanças, tão curiosa e instigante intelectualmente. Generosa como sempre é a juventude ao doar-se na luta contra a ditadura, por um país melhor e mais justo. Capaz de se encantar e celebrar a vida, a amizade, a lealdade, a confiança, de apaixonar-se, de amar perdidamente, de levar as coisas bem a sério, de estudar, trabalhar e entregar a vida por aquilo que acredita, como fizeram muitos jovens estudantes daquela Universidade e de outras e também jovens trabalhadores. Alguns deles, companheiros e amigos queridos que não puderam ver o fim da ditadura e que permanecerão em minha memória para sempre. Mas, todos jovens lutadores cuja coragem, exemplo e entrega devem ser sempre lembrados e nos inspirar para o presente e para o futuro.
Me encontrei ali, como se estivesse numa máquina do tempo que voltava também para o futuro diante daqueles rostos jovens e bonitos, emocionados, plenos de energia e curiosidade. Fui tomado por uma profusão de emoções e lembranças, estado que perdurou em mim por vários dias.
Cada um de nós deu seu testemunho particular, segundo a sua visão, as experiências que viveu, os seus sentimentos, ressaltando esse, ou aquele aspecto: como era a Universidade, o movimento estudantil, o papel dos professores, a repressão, a militância clandestina, as prisões, a tortura, as mortes, o cotidiano, a cidade, a juventude daquele tempo, seus valores, seu jeito de ser.... Enquanto esperava minha vez de falar, me encontrava confuso, não sabia muito bem o que dizer a eles, fugindo de clichês e de qualquer tipo de retórica, que é algo que detesto.

Bem, chegou a minha hora e então, comecei a falar pra eles, como era a Niterói de 1964, 65, 66, 67, 68, 69, que cidade era aquela, sua vida cotidiana, cultural, como eram os jovens universitários daquele tempo, que Universidade era aquela, como se organizava o movimento estudantil contra a ditadura na UFF, como eram fortes os ideais libertários, socialistas, revolucionários e também um pouco sobre mim, sobre minha vida e militância daqueles anos.
Nunca tinha se dado a oportunidade de que eu visitasse o campus da Universidade no Gragoatá. Construído numa área aterrada da baía da Guanabara, num bairro que foi outrora um dos mais bucólicos e preservados da cidade, bem em frente da escola onde estudei e terminei o curso ginasial, que ficava na rua da praia, de frente pro mar. Pois é, roubaram a rua da praia das minhas lembranças, o contorno natural e singelo do casario da cidade à beira mar, o cais onde os moleques matavam aula de vez em quando, para dar um mergulho, ou simplesmente fumar escondido, onde dei o primeiro beijo na minha primeira namorada e também o mesmo lugar onde cortei um cacho dos seus cabelos quando nos despedimos sem saber que era para o resto das nossas vidas, no último dia de aulas ao término do quarto ano ginasial. Mas o campus do Gragoatá é bonito, só podia ser em outro lugar e não em cima do cais da minha infância/adolescência, não por sobre o primeiro beijo dado na minha primeira namorada. Enfim..., coisas minhas. Mas tudo isso estava no filme, passando na minha cabeça, quando me sentei à mesa com os demais companheiros naquele auditório repleto e me tocou falar.
A Universidade onde ingressei em 1966, no Curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras através de um vestibular que era feito diretamente para cada faculdade e não unificado, não tinha campus, se chamava Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFERJ) e na verdade não era bem ainda uma universidade, era apenas um começo. Reunia umas poucas faculdades isoladas, umas mais antigas e tradicionais, outras mais recentes. A minha funcionava de favor à noite, no prédio da Escola Técnica Aurelino Leal (uma escola para moças), à Rua Presidente Pedreira, no bairro do Ingá, frente ao Palácio do Governo do antigo Estado do Rio (hoje museu) e da vetusta Faculdade de Direito.
A Niterói daquele tempo era uma cidade acolhedora, singela, provinciana, com o glamour de ser a capital do Estado e ao mesmo tempo distante apenas uns vinte minutos de barca do Rio de Janeiro, então Estado da Guanabara, mas ainda com ares de capital da República, uma grande metrópole, um grande centro de atração e difusão cultural e política. Não sei se falo como quem olha saudoso para o tempo dos seus 20 anos, ou se era assim mesmo. Provavelmente tá tudo misturado. Mas, é como lembro e assim contei para aqueles jovens desde aquela mesa, com os sentimentos à flor da pele.
Não havia Internet, óbvio, nem celular, é claro. Muitos não tinham telefone em casa, nem televisão (que era ainda em preto e branco e esse filhote da ditadura, a TV Globo, estava apenas começando). Viagem de avião, pouquíssimos havíamos experimentado. Ir ao exterior, ainda que na própria América do Sul, dava para contar nos dedos os que tinham feito esse tipo de viagem entre nós. Para nossa alegria, a minissaia reinava absoluta nas ruas e nas faculdades do Rio, Niterói e outras cidades, exibindo a beleza, a sensualidade e a morenice das meninas. A pílula tinha aparecido para liberar as mais ardentes paixões, ajudando os jovens a derrubar tabus e seus próprios limites. Mas, não há que se enganar, ao contrário do que muitos pensam, não éramos tão avançadinhos e liberados assim. Éramos cheios de dúvidas, inibições e moralismos que vinham da nossa formação.
 Andávamos a pé para todos os lados da cidade, a qualquer hora, sem problema algum. Nos reuníamos na casa de um ou outro, muitas vezes em praças e parques, para estudar, ou em grupos de estudos para discutir literatura, filosofia, política. Debatíamos livros de Jean Paul Sartre, como “O Ser e o Nada”, “A Náusea” e outros, Simone de Beauvoir, Marcuse, Jorge Amado, Graciliano Ramos, “A História da Riqueza do Homem” de Leo Huberman, “A Concepção Materialista da História” de George Plekhanof, “Os Condenados da Terra” de Franz Fanon, textos de Marx, Lenin, Engels, Mao, livros como “A Revolução Brasileira”, de Caio Prado Jr, obras do historiador Hélio Silva, questões da realidade brasileira, além de outros temas e escritos. Éramos sedentos de informação sobre a jovem Revolução Cubana, Fidel, Che... Todos os livros mais identificados como literatura de esquerda, obviamente, tinham que ser encapados com papel de embrulho, ou de presente, ou outro qualquer, e carregados e guardados com muita cautela para dissimulá-los, já que ler esses livros era coisa de comunista e subversivo e você poderia ser denunciado e preso.
Bem, quem acabou de ler esse trecho, pode pensar que éramos uns chatos, que só pensávamos naquilo (política, revolução, preocupações intelectuais etc). Chatos havia, com certeza e alguns bem difíceis de aturar, mas não era a media. Curtíamos bossa nova, samba, rock and roll e o que mais viesse. Frequentávamos vez por outra uns barzinhos para tomar uma cerveja ou uma batida, com a pouca grana que tínhamos. Uns eram mais descolados e outros mais caretas e tímidos (entre os quais me incluo). Organizávamos e participávamos das festas das faculdades, namorávamos bastante, íamos à praia, principalmente a de Icaraí, cada um com a sua tribo. Yes..., Icaraí, sim senhor, a praia ainda era ótima, quase limpa e ficava repleta, principalmente nos fins de semana.
Tínhamos um forte movimento cineclubista e os diretórios acadêmicos da Filosofia, Economia e Engenharia, principalmente, possuíam projetores de 16 mm e cineclubes organizados que promoviam sessões semanais com debates às 5ªs, 6ªs à noite e nos sábados à tarde. A adesão dos estudantes era grande. Funcionava assim: os diretórios se credenciavam na filmoteca da loja Mesbla no Rio de Janeiro para alugar os filmes e também se associavam na Cinemateca do MAM; no início da semana preparávamos a programação com uma sinopse de cada filme e crítica; rodávamos no mimeógrafo, distribuíamos para a galera e fixávamos também nos murais das faculdades; às 5ªs feiras pegávamos as latas com os filmes na Mesbla ou no Mam; nas quintas, sextas, ou sábados (dependendo da programação de cada diretório) aconteciam as sessões seguidas de debates. Eram em geral filmes com forte conteúdo político, ou clássicos do cinema, obras do neorrealismo italiano, da nouvelle vague, grandes filmes do cinema americano, filmes soviéticos, cinema novo; Roco e Seus Irmãos, Roma Cidade Aberta, Paisá, A Estrada, Os Companheiros, A Doce Vida, Umberto D, westerns de John Ford, A Balada do Soldado, Quando Voam as Cegonhas, Outubro, A Greve, Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e muitos outros. Na segunda-feira, lá ia um de nós pro Rio devolver as latas bem pesadas com os filmes. O movimento cineclubista teve um forte apelo cultural e político e desempenhou um importante papel na formação cultural e política dos estudantes, era a oportunidade de conhecer a técnica e a mensagem de obras primas da sétima arte que não estavam ao alcance de todos.
Em 1966 ingressei na Universidade. Minha opção e formação política de esquerda tinha se iniciado no movimento secundarista já antes do golpe. Já era militante do PCB, vinculado à organização de base do meu colégio e membro do Comitê Secundarista do Partido em Niterói. Participamos ainda como secundaristas dos esforços para reconstruir o Partido na cidade e no Estado, o qual havia sido duramente golpeado pela repressão com o golpe de 1964. Em 1965, eu e outros militantes da minha base e do Comitê Secundarista, fomos sondados por companheiros do Comitê Universitário sobre as nossas preferências de carreira na Universidade e ao saberem que três de nós tínhamos inclinação para as ciências humanas e sociais ficaram exultantes. Queriam muito montar uma base do Partido na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, onde tinham apenas uma companheira, meio isolada. E assim foi que eu, Aluízio Ferreira Palmar (que já era membro da Sessão Juvenil Estadual do Partido e um militante com mais experiência) e Getúlio Gaspar de Gouveia (um baiano que era uma figuraça, já falecido), nos aventuramos ao vestibular. Fomos liberados de muitas tarefas partidárias durante o mês de janeiro de 1966 e enfiamos a cara nos livros. Virávamos à noite na casa dos meus pais, onde morava, nos entupindo de café e cigarros para ficar acordados. No dia seguinte estávamos estragados, mas 18, 20 anos aguentam tudo e à noite, retomávamos o tranco. Passamos os três e estava montada a base da Faculdade. Em 3 meses mais, já seríamos uns 9 militantes ali, com influência no DA e com vários simpatizantes. O Comitê Universitário queria organizar uma manifestação na cidade. Em seguida ao nosso ingresso, demos a ideia da organização de um trote de calouros diferente, logo após o Carnaval. Faríamos um desfile dos calouros no Centro, meio fantasiados, com alguns tambores e instrumentos de sopro e também com cartazes reivindicando mais verbas para a universidade, defendendo a autonomia, criticando o acordo MEC-USAID e quando chegássemos à Pça. Arariboia, em frente à Estação das Barcas, abriríamos faixas denunciando a repressão e a ditadura. E assim fizemos e a Polícia baixou o cacete e dispersou o protesto, com meia dúzia de detidos e uns quantos que levaram cacetadas. Foi a primeira manifestação de protesto contra a ditadura em Niterói. Naquele mesmo ano fui chamado a compor o Comitê Universitário e mais ou menos ao mesmo tempo num Congresso semiclandestino realizado pela União Fluminense de Estudantes fui eleito para a diretoria daquela entidade proibida e proscrita. Já no começo de 1967 fui indicado para ocupar uma das vice-diretorias da UNE, também clandestina e proscrita. Minha vida legal e a minha permanência na Universidade se complicava cada vez mais. Mesmo assim, com todas as dificuldades e perseguições, consegui manter meu vínculo até 1968. Depois do AI 5, editado em 13 de dezembro de 1968, eu e muitos estudantes e professores fomos desligados da UFF e de outras universidades. A chapa ia esquentar ainda mais!
Nossa militância política e compromisso ideológico se intensificavam e aprofundavam, ao mesmo tempo que cresciam as manifestações dos estudantes, começava a ressurgir timidamente o movimento operário. A repressão aumentava contra os protestos estudantis, invasões das universidades, estudantes presos e espancados. Sindicatos de trabalhadores e entidades estudantis eram reprimidos e fechados, a ação repressiva contra os trabalhadores rurais era violenta. Prisões, tortura, assassinatos, censura e medidas econômicas de grande concentração de renda, arrocho dos salários e exclusão social andavam juntos.
No PCB cresciam as divergências em torno das Teses do seu VI Congresso, na avaliação dos erros políticos durante o Governo Jango, da incapacidade de resposta e mobilização contra o Golpe, de uma orientação enérgica e decidida na luta contra a ditadura. Os militantes, sobretudo os mais jovens, mas também lideranças admiradas, reconhecidas e experientes do Partido clamavam por ação. Começava a divisão e fracionamento do PCB. No Estado do Rio surgiu uma oposição à condução do Comitê Central e também uma dissidência que reunia a juventude e setores operários. O mesmo fenômeno aconteceu no Estado da Guanabara e em vários estados. Nosso rompimento com o Partido foi uma questão de tempo. Inicialmente, criamos uma organização dissidente com os setores da juventude, companheiros do setor de operários navais e alguns militantes do interior do Estado. Fomos procurar apoio e articulação com dissidências de outras regiões e também com setores de outras organizações de esquerda, como a Ação Popular (AP) e Política Operária (POLOP). Começamos a viajar pelo Brasil, realizando contatos, reuniões, buscando formas conjuntas de atuação. Nossa proposta era a de organizar a luta armada contra a ditadura e por um governo popular e revolucionário. Entendíamos esse processo como uma luta longa, difícil e cheia de sacrifícios. Era preciso organizar a guerrilha rural como estratégia principal da luta revolucionária, ao mesmo tempo que se realizavam ações armadas nas cidades e se trabalhava nos movimentos de massas. Esse era o plano e começamos a colocá-lo em prática, definindo uma área para a instalação da guerrilha rural, treinando e enviando militantes para lá (no nosso caso foi o sudoeste do Paraná), transferindo militantes para a clandestinidade, preferencialmente fora de Niterói, pois não era mais seguro morar nas nossas casas ou nas das nossas famílias e para nós seria praticamente impossível sobreviver clandestinamente na cidade. Nascia o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR 8) e também suas ações armadas. O mesmo processo ocorreu com diversos grupos de esquerda no Rio, São Paulo, Minas Gerais, Nordeste, Rio Grande do Sul, Paraná e outros lugares. Combatentes da ALN de Carlos Mariguella e da VPR de Carlos Lamarca (não ainda com esses nomes assumidos) já tinham começado as ações armadas antes de nós, ainda em 1968.  
Vivíamos o época da Guerra Fria que confrontava o bloco socialista com os Estados unidos e o chamado Ocidente. Começava a escalada da intervenção norte-americana na Guerra do Vietnã. O exemplo inspirador e a repercussão das transformações realizadas pela Revolução Cubana eram referências importantíssimas, assim como a existência de inúmeros movimentos guerrilheiros na América Latina: Guatemala, Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, os Tupamaros no Uruguai. Depois da vitória da Revolução de Independência da Argélia no início dos anos 60, cresciam os movimentos de libertação nacional na África. Esse era o tempo que vivíamos.
Durante 1969 tiveram lugar as prisões em série de vários militantes do MR 8, a minha inclusive, no Rio de Janeiro, em Niterói, no Paraná, motivadas por táticas de infiltração dos órgãos de repressão, além das dificuldades da vida clandestina e falhas também de subestimação dos órgãos repressivos. A organização seria praticamente dizimada naquele ano. Apenas alguns companheiros conseguiram escapar de ser presos. Um dos nossos dirigentes, Reinaldo Silveira Pimenta estudante de Engenharia da então UEG, foi assassinado pelo CENIMAR em 27 de junho de 1969, sendo jogado de um prédio em Copacabana. Todas as organizações, movimentos e partidos que se levantaram na resistência à ditadura, mais cedo ou mais tarde passaram pelas mesmas situações, independentemente de estarem ou não engajados na luta armada. A besta estava solta! Daí em diante, a história é conhecida: prisão, tortura, sofrimento, humilhações, julgamentos sumários por tribunais militares, assassinatos, desaparecimentos e também resistência, muita resistência, dos presos, das famílias, dos advogados, daqueles que continuavam a luta nas trevas. Durante os 2 anos em que estive preso, primeiro, transformei-me em um especialista em guarnições do Exército, passando pelo 3º Regimento de Infantaria, Forte Barão do Rio Branco, Forte do Gragoatá, Fortaleza de Sta. Cruz, depois “sentei praça” na Marinha e virei ilhéu, na terrível Ilha das Flores, em seguida Ilha das Cobras e finalmente fui depositado no sistema penitenciário, Presídio Hélio Gomes no Complexo da Rua Frei Caneca (uma casa dos horrores) e por último a Ilha Grande, com seus carcereiros sádicos.
No dia do julgamento do processo do MR 8, pelo Conselho de Justiça da 1ª Auditoria de Marinha, nós, cerca de 30 réus, fomos condenados a penas que somavam mais de 350 anos de prisão e ali, naquele momento, ao recebermos a sentença, mesmo cercados por uma escolta armada impressionante, cantamos nas fuças deles o refrão do Hino da Independência do Brasil: “Brava gente brasileira, longe vá temor servil, ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo Brasil. Ficaram atônitos, sem ação. Lavamos nossa alma. Ficou para a História.
Na madrugada de 14 de janeiro de 1971, eu era banido do país em direção ao Chile da Unidade Popular, de Salvador Allende, num grupo de 70 presos políticos, trocados pelo Embaixador da Suíça, sequestrado pela VPR em 7 de dezembro de 1970. Da Ilha Grande, saímos 6 companheiros, algemados uns aos outros. Do antigo MR 8 éramos 3, eu, Aluízio Palmar e Rogério Garcia Silveira. Outros companheiros do nosso grupo, como Luiz Carlos, tinham sido pedidos na lista para a troca, mas a ditadura não aceitou.
Chegamos em Santiago do Chile no final da madrugada e primeiras horas da manhã e fomos vendo a cidade, primeiro enevoada pelo amanhecer e depois luminosa. Era um verão esplendoroso. Fomos recebidos com júbilo e imenso carinho desde o Aeroporto, pelas ruas da cidade e durante todo o tempo que vivi no Chile, experimentei a enorme solidariedade do povo chileno.
Abria-se uma nova e surpreendente página da minha vida e também para os outros e eu podia escrever qualquer coisa e me reinventar naquela página em branco maravilhosa. Como diria um poeta, não tinha um tostão, apenas a roupa do corpo, mas era jovem e tinha comigo o sentimento do Mundo. Estava no Chile da Unidade Popular, de grandes transformações, o povo na rua, a juventude, os trabalhadores. Participava ali da história sendo construída ao vivo e a cores, o enfrentamento, a luta de classes não estavam nos livros que eu já havia lido, e sim na vida real, na calçada do lado, nas ruas e praças, nas fábricas e universidades, nos bairros populares, no campo, nos jornais, no parlamento, no Palácio do Governo, nas gigantescas manifestações e desfiles. Mas, estavam também nas mansões dos milionários indignados que se sentiam ameaçados nos seus privilégios seculares e conspiravam com militares traidores estimulados pelo governo dos Estados Unidos e já, já iriam mostrar a sua face mais tenebrosa, transformando o Chile da esperança e da redenção num verdadeiro matadouro. Foi lindo estar ali, ombro a ombro com os trabalhadores, com a juventude, com o povo chileno, partilhando seu destino. Foi minha universidade da vida, da política e também da sociologia da ciência política, da história contemporânea e ainda da reportagem. Éramos milhares de refugiados, brasileiros de todos os quadrantes, uruguaios, argentinos, bolivianos, peruanos, colombianos, paraguaios, dominicanos, gente da América Central. Todos trocando culturas, experiências, histórias. Foi a minha descoberta da América Latina e ali me senti irmão de todos eles e me descobri latino-americano. Fiz amigos para sempre, conheci a companheira da minha vida que depois da tragédia do golpe de 11 de setembro de 1973 convidei a andar comigo pelo Mundo e até hoje continuamos caminhando e sonhando, tendo esperanças e nos amando.
Depois do Chile, Cuba, onde residi durante mais de 4 anos. O privilégio de conhecer de perto a Revolução Cubana, de viver, trabalhar e aprender ali. O convívio fantástico e inesquecível com o povo cubano, tão parecido conosco, com tanta dignidade, coragem e solidariedade.
Meu exílio terminou na Europa, na Suécia, governada então pela social democracia. Um país moderno, avançado, com níveis de educação, produtividade e distribuição de renda elevadíssimos, que naquele momento foi extremamente acolhedor para os refugiados da América Latina, que havia se transformado em uma grande prisão. Lá, tratei de me engajar de imediato no movimento pela Anistia no Brasil.
 Em agosto de 1979, quando estávamos de passagem pela França, numa viagem que fizemos, nasceu, um pouco antes do tempo o nosso filho André. Nascia o pequenino no exílio, era ao nascer um duplo exilado, do Brasil e do Chile, mas era também o filho da esperança e da liberdade. A Anistia, já se anunciava e em maio de 1980 pudemos fazer as malas e vir para o Brasil, para Niterói, reencontrar os meus pais já velhinhos e transbordantes de contentamento, meus irmãos, muitos amigos e companheiros tão queridos e saber com pesar imenso de outros tantos companheiros assassinados covardemente. Pouco a pouco fui caindo na vida brasileira novamente, a luta pela sobrevivência, um filho pequeno para criar, trabalhando como jornalista, participando de lutas sindicais, apoiando movimentos sociais. Minha trajetória profissional e política acabou me levando para a Fiocruz, me aproximando da área da saúde e de participar da luta pela reforma sanitária e pela implantação e defesa do SUS. Nisso continuo.
Ao fazer aquela viagem para Niterói, naquela terça-feira, 31 de março, aceitando o convite da Comissão Municipal da Verdade e do DCE da UFF e sentar naquela Mesa do evento para dar meu depoimento para aqueles estudantes e professores, tive que contar um pedaço da minha história, que não tem nada de extraordinário, é apenas um pedacinho de uma história muito maior que é de tanta gente e é a do povo brasileiro e tive que fazer isso do jeito que eu sou, com a minha emoção. Foi ali em Niterói, onde nasci e vivi minha infância e primeiros anos de juventude, no Colégio, na Universidade, no movimento estudantil, no contato com os trabalhadores e companheiros daquela cidade, que meus olhos se abriram, que formei minhas convicções e princípios mais profundos, as bases da minha visão do mundo, que tenho carregado comigo pela vida inteira. Essa mesma emoção que me foi despertada, me levou a imperiosa necessidade de contar mais um pouco, de entrar na máquina do tempo, pra frente e pra trás e fazer uma pequena viagem na minha própria vida. Não foi nada demais, mas acho que tem valido a pena e talvez, quando se aproxime o tempo em que a cortina se feche, possa dizer que o espetáculo foi interessante. Vida que segue...

Umberto Trigueiros





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