REVELAÇÕES DO CONTATO DE ONOFRE PINTO QUE SUCUMBIU
E PASSOU PRO LADO DA REPRESSÃO
O texto abaixo é de autoria de Gilberto Giovannetti, que juntamente com sua
companheira Madalena Lacerda eram
contatos de Onofre Pinto em São
Paulo no ano de 1974. O casal foi atraído pelo
sargento Alberi Vieira dos
Santos para um contato em Foz do Iguaçu, porém foi seqüestrado na Estação Rodoviária de Curitiba
por agentes do Centro de Informações do Exército. Após interrogatório Gilberto e Madalena
passaram a trabalhar
para a repressão. Nesse
material que Gilberto me enviou em 2004, ele faz importantes revelações.
“Se vas para Chile...
No final do ano de 74, cinco
meses após nosso
sequestro e da saída do cativeiro, fomos procurados. Cumprindo o acordo
com os donos das espadas, os donos
dos pescoços aceitaram a proposta para fazer uma viagem de férias com duração
de dois meses pelos países
andinos e Argentina. Como até aquele momento
a tentativa de nos infiltrar
ou colocar em contato
com pessoas e grupos de esquerda não
rendera nada, até porque já tinham acabado com eles, acharam por bem procurar
saber sobre pessoas que estavam no exterior e aqueles que eventualmente queriam
entrar clandestinamente no país. Intimamente sabíamos que não encontraríamos
essas pessoas. Os tempos não estavam para isso.
Forneceram vários nomes e endereços de pessoas que se encontravam no
exterior, particularmente na Argentina, alguns conhecidos de minha companheira.
Só
Deus e os sujeitos de histórias como a nossa, de pessoas com consciência e sentimento democrático, submetidas a pressões do aparelho de terror do Estado,
especialmente em ditaduras, sabem o que passa
pela cabeça nessas
horas. Existem mil formas de resistir e conduzir as coisas como
entendemos serem as melhores para nossos objetivos.
A
pior forma de resistência é o confronto direto, com consequências
imprevisíveis. Pior ainda a submissão total, perda de autonomia como indivíduo,
redução à indigna condição de coisa,
em que muitos, alquebrados pelo terror e tortura, caíram. Em condições adversas
é vital preservar a maior margem
possível nossa condição de indivíduo, como agente ativo, manter e ampliar
a autonomia e dignidade
possível.
Ceder
e resistir. Ceder no supérfluo para resistir no fundamental, no caso evitar apontar nomes e colocar
pessoas em risco.
Nos demoramos
em países como Bolívia e Peru, onde tivemos contato com Neiva Moreira. Um contato pessoal, com boas e
sérias conversas, mas
nenhuma informação comprometedora (e
se tivesse saberíamos
omiti-las). Procuramos mais contatos com peruanos e turistas.
O Peru estava, na época, com o governo do Gal. Alvarado e vivia uma relativa liberdade.
Passamos pelo Chile rapidamente.
*
A garganta seca incomodou a noite toda. Nenhuma boa alma havia me lembrado de
providenciar água mineral para suportar a secura provocada pela travessia do
deserto de Atacama. Estávamos viajando de Arica para Santiago e o ônibus não levava água potável
para os passageiros e não fez
escalas. As únicas paradas foram em
duas rigorosas barreiras policiais. Em uma delas foram vistoriadas todas as bagagens de passageiros a pretexto de
fiscalização sanitária, estaria havendo, alegaram, transporte de frutas contaminadas
que comprometiam a qualidade produção chilena. Em ditaduras nunca se sabe a
verdadeira intenção das autoridades.
De
qualquer maneira, havíamos nos despojado rapidamente de todo o material
impresso com conteúdo político que encontramos fartamente no Peru do general
Alvarado. Foram despejados pela janela do taxi que nos transportou de Tacna
ao posto alfandegário de Arica, olhos atentos ao motorista e duas belas jovens
chilenas que dividiam a viagem conosco. Em ditaduras é preciso estar sempre atento.
A
secura e cansaço na longa viagem para Santiago foi amenizada pelas conversas
com a Madalena. Ela lia “Chile, una loca geografia”, e me
explicava, deslumbrada, os movimentos tectônicos da costa chilena, de como o
litoral sofria modificações constantes, com ilhas que apareciam e desapareciam
de um dia para outro.
Chegar em Santiago foi para mim oportunidade de ver de perto a
situação do primeiro
país latino-americano que chegara a um governo socialista pela via
eleitoral e tivera essa experiência soterrada sob os tanques e aviões. Pinochet jogou
todo poder repressivo
das forças armadas
e paramilitares do Chile para consolidar sua ditadura.
Para Madalena
o retorno à cidade em que se asilara
trouxe sentimentos contraditórios. Parte de sua vida lá ficara, ela falava com
paixão e carinho do povo chileno, do
bairro de Santa Luzia, das peñas, dos
muitos amigos e companheiros com quem lá convivera durante o exílio. Me levou
ao mercado para comer porotos granados,
vi o Mapocho cujas águas misturaram-se com o sangue dos socialistas fuzilados e atirados ao rio.
Havíamos
acompanhado, atentos, a tragédia chilena e a evolução do golpe, em São Paulo,
pelo velho Transglobe, nosso contato com o mundo. Nossos primeiros anos de
convívio, antes e depois do sequestro, tiveram como fundo sonoro, além das
notícias vindas pelo rádio, os acordes da música latino americana, especialmente andina e chilena.
Ao caminhar pelas ruas da capital chilena os sons de Vítor Jara,
Atahualpa Yupanque, dos Parra, Mercedes
Sosa, dos Quillapaiun ressoavam em minha cabeça.
“Pongo em tuas manos abiertas”,
“A desalambrar”, “Te recuerdo Amanda”, “Que
vivan los estudiantes”, “Tengo tantos
hermanos”, e o hino da Unidade Popular “Venceremos” acalentaram tantas esperanças. Agora o povo passava
silencioso e cabisbaixo.
Ficamos
deprimidos. A gota d’água aconteceu na noite em que caminhamos em direção a
praça onde permaneciam os escombros do La Moneda bombardeado. Na praça vazia e escura um cão sem dono, sujo e faminto,
vaga a esmo, farejando o chão, tendo ao fundo os escombros do palácio. Madalena não se contem, aquela
imagem foi uma sobrecarga para as emoções represadas, tensões e preocupações
acumuladas. O choro explode.
Caminhamos para o hotel e ela me conta mais uma vez como era o povo do
Chile que conhecera, alegre e participativo. Chegamos ao quarto na hora em que
iniciava o toque de recolher, o estado de sítio ainda estava em vigorar.
Minutos depois, ouvi tiros e assisti pela janela do quarto - as luzes apagadas
- um ônibus de carabineiros recolher
pessoas presas em uma casa próxima. Resolvemos partir para a Argentina no dia seguinte.
Quem criou
as condições para a queda
de Allende, o médico socialista que chegou ao poder
pelo voto? Apenas os caminhoneiros manobrados pela direita que boicotaram o
abastecimento de gêneros de primeira necessidade e criaram insatisfação na
população? O débito não vai também para a irresponsabilidade da esquerda
desvairada?
Apesar da neve o trem atravessou os Andes e nos levou até a simpática Mendoza. Dois educados jovens chilenos, que iam a
Argentina, foram nossa companhia. Segundo disseram, iam para compras pois no Chile os preços estavam altos demais e não se
encontravam bons produtos. Ficavam
deslumbrados com os preços das quinquilharias expostas nas lojas.
Eram
boas companhias e viajamos juntos até Buenos Aires. No entanto ficamos na
nossa, no papel de turistas maravilhados. Nas ditaduras nunca se sabe quem realmente são as pessoas.
Mesmo
no exterior poderíamos estar sendo vigiados. Acho que nunca saberemos a
verdadeira extensão do cerco
repressivo que se armou no continente naquele período, quais as conexões entre
as policias políticas e das forças armadas dos diferentes países.
A
estadia na Argentina foi etapa final e a mais importante de nossa viagem, que
até ali não passara de uma viagem de
turismo. O país saíra de uma ditadura
militar e vivia o governo de Isabelita Perón,
que assumira após a morte do caudilho, mas a instabilidade e radicalização
política, agravada pela situação
de exceção vivida pelos
países vizinhos - Chile, Uruguai, Brasil
e Paraguai sob governos militares - levava o observador mais atento a se preocupar com o que estava por vir. Como
sabemos, a nova ditadura que veio com o golpe de 24 de março de 1976 bateu
recordes de violência e desrespeito aos direitos humanos.
Muitos
dos exilados, inclusive brasileiros, fugindo das tormentas do Chile e alguns do
Uruguai encontraram lá um refúgio
temporário e muito
precário. Tínhamos nos comprometido com os militares
brasileiros a fazer contatos e
pensava nas estratégias para impedir
o envolvimento com coisas sérias que pudessem por em
perigo as pessoas que procuraríamos e ao mesmo tempo não atrair desconfiança sobre possíveis traições ao acordo.
Esses contatos em Buenos Aires eram necessários já que os militares
brasileiros tinham e
forneceram nomes e endereços
de pessoas que sabiam que eram conhecidas de minha companheira,
desde os tempos do Governo Goulart.
Não podiam ser evitados, mas poderiam ser
limitados. Não voltaríamos de mão abanando, o que poderia configurar uma
traição, mas não traríamos nada que os comprometessem.
Avaliamos
seriamente a possibilidade de ter uma conversa aberta com as pessoas e contar tudo que se passara conosco. Mas,
seria o mais correto? O que aquelas pessoas, elas próprias envolvidas em graves
problemas, poderiam fazer? E quanto a nós, teríamos chance
de escapar e poder um dia
voltar ao Brasil? As consequências de denunciar publicamente os fatos contribuiriam
para o processo de abertura? Poderia
confiar nas pessoas? Não estávamos sendo
seguidos? Não era melhor continuar o jogo, minimizar informações, e só tomar atitudes drásticas caso houvesse um
recrudescimento da repressão no Brasil? Além do mais, a esquerda radical sempre
consegue superar-se em se tratando de irresponsabilidade.
Em
situações de estado de necessidade - como a que vivíamos - é preciso manter a
cabeça fria, avaliar corretamente todas as variáveis em jogo, ser mais responsável com as consequências para si e para os outros do que pensar na autobiografia. Mesmo porque,
com exceção de Brás Cubas, não se escrevem memórias póstumas.
Ser prudente e não confiar ingenuamente nas pessoas. Infelizmente não era
possível abrir o jogo. Nas ditaduras ocorrem situações assim.
Estivemos
com Flávio Tavares e Paulo Schilling, pessoas que respeitamos e por quem temos
- especialmente Madalena - laços de afeto e que jamais prejudicaríamos. Tinham problemas demais, sabiam que eram
visados e bastante conscientes do
momento político.
Como foram esses encontros? Visitamos Paulo em sua casa no bairro de Chacarita
e Madalena sentiu sincera
satisfação em revê-lo e à esposa, depois de tanto tempo e agruras. No
passado havia construído sólidos laços
afetivos com toda a família. Marcamos novo encontro em um restaurante e entre batatas fritas e copos de vinho falamos de
nossas vidas.
Paulo falou das filhas e, claro, da Flávia, presa em Montevidéu com
outros tupamaros, nos mostrou uma
carta dela. Analisamos conjuntamente a situação política no continente,
contou-nos do livro que escrevera sobre a geopolítica do cone sul e nos disse,
rindo, que para sua surpresa, foi procurado por oficial
das forças armadas
argentinas, que encomendou grande
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quantidade de
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exemplares
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para
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serem
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estudados
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nas
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escolas
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militares.
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No final da refeição, caminhamos pelas ruas centrais de Buenos Aires e
nos despedimos, contentes com o encontro. Senti-me aliviado e pensei que nada daquilo que conversamos era grave.
Nenhum segredo de perigosos conspiradores. Informaríamos apenas dos estudos e
do livro para o nosso coronel.
Tanto
nós, como Paulo e Flávio, tínhamos opiniões aproximadas sobre as brechas que surgiam nas forças armadas,
especialmente no caso
brasileiro, para a
reversão do tenebroso quadro existente. Com a esquerda
armada aniquilada e a
sociedade civil e sociedade política acuadas, as especulações sobre as
contradições dentro do aparato militar
atraiam o foco das análises que fazíamos.
Li,
mais ou menos na mesma época, creio que depois do golpe de 76, na Argentina, um artigo de Flávio Tavares, aliás Júlio Fidalgo, para o Estadão, onde lucidamente analisava a necessidade de
deter o que chamou de ciclo da
violência na América Latina. A mecânica de ação-reação entre guerrilheiros e militares, com retaliações de ambos lados, levava a uma
exacerbação da barbárie, a um paroxismo do terror e as
maiores vítimas desse processo eram a população e a democracia.
Foi
mais ou menos esse o teor das conversas que tivemos na ocasião com Flávio
Tavares. Não me lembro de algum outro
aspecto importante, além dos relatos
das velhas complicações pessoais que brizolistas como ele e a Madalena tiveram
nos idos de 64 e 68.
Continuamos
decididos a enfrentar nossos problemas sozinhos. E mais, comecei a achar que poderíamos ter um papel a desempenhar
no desarmamento de espíritos que se fazia cada vez mais necessário.
Resolvemos,
por nossa conta, procurar Idalina, esposa de Onofre. Tínhamos interesse pessoal
em saber mais coisas do
que havia ocorrido com ele. Ela, como nós, não sabia nada.
Nós já sabíamos que o Alberi14 (o “Jonas”) era um agente infiltrado
(mantivemos essa descoberta em segredo dos militares) e procurou-nos em nome de Onofre, nos atraindo
para a armadilha. Mas não sabíamos
mais nada. Às poucas vezes em que perguntamos sobre Onofre aos agentes da
repressão eles não nos respondiam, apenas davam
um sorriso enigmático, que poderia significar muitas coisas, inclusive de que
Onofre havia se “passado” (chegamos a pensar nessa hipótese).
Idalina não recebia informações do marido desde do período em que fomos
seqüestrados, passava necessidade, juntamente
com a filha, em uma situação muito precária.
Mulher simples, sem nada contra ela, no máximo teria que dar um depoimento quando chegasse ao Brasil e se reintegraria a seus familiares. Além do mais os militares
não fariam nada que
pudesse nos “queimar”, pois estavam interessados em coisas mais “quentes”. Discutimos com Idalina essa
possibilidade de voltar para casa sem informá-la, é claro, de nossa complicada
situação. Ela aceitou e animou-se.
Viajamos
juntos até São Paulo e nos despedimos. Não nos vimos mais. Durante essa viagem tivemos contatos - conforme instruções - com os agentes brasileiros, por cartões postais e por telefone. Um agente esteve
conosco em B. Aires, e em Porto Alegre encontramos nosso coronel. O jogo
continuava, queríamos preservar nossas vidas, mas não pagar um preço alto
demais, como se infiltrar em organizações
ou em atividades organizadas que poderiam
levar à detenção ou a morte de outras pessoas.
Agimos
com o máximo de sentimento humano. A experiência que passamos nos deixou mais
humildes, conhecedores de nossos
limites, defeitos e qualidades. Nunca agimos irresponsavelmente e por uma
questão mais de caráter pessoal do que ideológica, preferíamos continuar andando no
fio da navalha, num arriscado jogo duplo, do
que provocar prejuízos concretos às pessoas.
Buscando luz no fundo da noite ou quando o melhor é
não fazer nada.
Quando voltamos a São Paulo começamos
a trabalhar. Madalena retomou os estudos e chegava em casa às 23:30 horas. Quando não estávamos trabalhando ou
estudando ficávamos em casa sempre que possível. Também passamos a nos relacionar com pessoas das mais variadas
preocupações e até mesmo alienadas politicamente e evitávamos, conscientemente,
frequentar ambientes ou pessoas que poderiam nos por em contato com
articulações políticas, principalmente organizadas. Mesmo
omitindo informações, poderíamos estar sendo
seguidos. Vez por
outra fizeram
contato. Também deixaram números
de telefone para alguma informação.
Por um longo tempo, houve um afastamento completo. Ainda vivia-se com muito medo e insegurança.
Assim é nas ditaduras.
Retomaram contato em meados de 1976. Fui informado do processo em que havia sido condenado
- “a revelia” - a cumprir 2 anos de prisão Num dos encontros, e muitas vezes eram encontros cordiais, propus que simulassem minha
prisão ou me apresentaria e cumpriria a pena. Não gostaram da ideia. Insisti, queria demonstrar que
não queria continuar “clandestino”, mas não queria ficar naquela situação e não inventaria informações inexistentes. As
tímidas atividades políticas eram agora legais, abertas e pacíficas.
No
próximo encontro vieram com a proposta de que, já que eu insistia em cumprir
pena, deveria ser preso e passar
informações sobre as articulações dos presos políticos. Mau negócio. Pedi tempo
para pensar e me preparar para a possibilidade, mas intimamente sabia que não me sujeitaria ao papel. Queria
mesmo ganhar tempo,
fundamental nessas ocasiões.
Um mês depois respondi por carta e depois pessoalmente. Minha posição
era de não ir preso com aquelas
condições, não me sentiria bem e não gostava daquele trabalho. Não teríamos
condições psicológicas para suportá-lo.
Foram momentos tensos em que ficamos na expectativa do que ocorreria. —
“Também fazemos muita coisa de que não gostamos”, responderam, contrariados.
Retruquei que minha preocupação era tratar
de minha vida pessoal, se fosse
preciso cumpriria minha pena, mas não
queria nenhum outro compromisso. Nós estávamos neutralizados e fora de combate,os grupos de esquerda
armados estavam aniquilados, aquilo precisava ter um fim.
Foi um período em que o relacionamento mudou. Tentaram nos passar para
outros “controladores” e nesses encontros não se avançava. Não estávamos mesmo
dispostos, embora submetidos à forte pressão, a negarmos nossa humanidade. Insistimos: os tempos estavam
mudando, bastava ler os jornais, em breve seríamos figuras do passado, repressores e militantes da luta armada.
Continuaram
insistindo no acordo e pensavam em nos infiltrar nos movimentos da sociedade
civil, com os quais nós sempre nos “desencontrávamos”. Argumentavam: “Vocês falam bem, se fossemos preparar alguém
assim levaria anos”.
Em um dos últimos
encontros dessa fase veio outro agente, mais jovem, também militar que, pelas informações que trouxe a
nosso respeito e pelo comportamento parecia ser de outro órgão. Percebemos,
embora nada nos fosse dito, que havíamos sido “negociados”, num acordo entre os
diversos serviços de segurança. Passávamos de “controladores” do DOI- CODI para
os do SNI. Isso tudo foi dedução nossa, nunca nos foi explicitado.
O
episódio pode ser interpretado como
resultado do processo de enquadramento dos setores mais radicais que haviam atuado na repressão direta aos
grupos armados e adquirido grande autonomia
ao alto
comando das forças armadas.
Nos
encontros com o novo “controlador” depois de estudo mútuo e perguntas sobre o
passado, nos foi dito que contavam com a gente para uma “missão” no exterior.
Falaram vagamente em problemas nas Guianas. Achei estranho, mas logo compreendi que se tratava de técnica de
contrainformação, uma medida de segurança para a operação real que planejavam. Sempre foram bastante
profissionais. Nos deram um novo
papel para assinar, uma espécie de contrato de trabalho, vago, de uma única via. Tentamos argumentar que aquilo ia
prejudicar nossos compromissos profissionais e de estudo no Brasil. E se não
aceitássemos? Sorrisos sem graça; estaríamos rompendo o “acordo” e ... A ameaça
ficava no ar.
Sugeriu
que aquele trabalho era mais sofisticado, de inteligência. Se não aceitássemos,
e sabíamos disso, nos devolveriam aos antigos controladores, “gente da pesada” ... Aceitamos. Nas
circunstâncias acabamos por sentir satisfação ao perceber que poderia estar ajudando no desmantelamento da fase de atrocidades
e arbitrariedades que ocorriam contra
os oposicionistas.
Gilberto Giovanetti
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