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segunda-feira, 13 de abril de 2015

AS MARQUISES DE NITERÓI

6.2 AS MARQUISES DE NITERÓI
Aluízio Palmar
Naquele início da década de 60, a capital fluminense era um grande laboratório onde
fluíam intensamente ideias e práticas sociais das mais variadas vertentes. Trabalhistas,
nacionalistas, comunistas e trotskistas conviviam e disputavam espaços nos colégios, na
universidade, nos estaleiros, nas metalúrgicas, no comércio, nas repartições públicas,
bancos e sindicatos.
Eu fazia o clássico no Colégio Plínio Leite. Havia saído do tradicional Liceu Nilo Peçanha
ainda no primeiro ano e fui estudar numa escola particular, realidade de quem trabalha
durante o dia e estuda à noite. Nessa altura do campeonato eu já estava inserido nas
lutas sociais e dando os primeiro passos para organizar um núcleo de estudos e de luta
no colégio. Não era membro de nenhuma organização de esquerda, mas, digamos, um
livre atirador, estava em contato com todas as facções e transitava a vontade entre seus
militantes.

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Meu primeiro contato com o marxismo aconteceu em 1958. Foi por intermédio de um
grupo de operários calceteiros que pavimentavam com paralelepípedos as ruas de São
Fidélis, minha cidade natal, situada no Norte Fluminense. Eles pertenciam a uma base do
PCB da vizinha cidade de Campos.
Em 1959, mudamo-nos para São Gonçalo, cidade localizada no Grande Rio. São Fidélis
não oferecia condições para que eu e meus irmãos continuássemos com nossos estudos.
Papai era comerciante de secos e molhados e queria que seus filhos tivessem o estudo
que ele não teve.
Naquele quarto ano do governo de Juscelino Kubitschek, o país se debatia em uma
tremenda inflação, havia escassez de alguns produtos alimentícios e muita tensão social,
principalmente na área da Estação das Barcas, onde constantemente era grande o
número de pessoas que atravessavam a Baía de Guanabara para trabalhar na cidade do
Rio de Janeiro. Todos os dias, uma extensa fila tomava conta da praça e, depois de dar
várias voltas, seguia em direção ao Mercado São Pedro, na Rua Visconde do Rio Branco.
Desde as primeiras horas da manhã, operários, executivos, escriturários e empregadas
domésticas se amontoavam esperando a condução.
Esse péssimo serviço prestado pela empresa concessionária do transporte marítimo entre
Niterói e o Rio de Janeiro deu origem, em maio de 1959, a uma revolta popular de grande
envergadura. O que havia começado como um protesto localizado acabou propagandose
por toda a cidade, assumindo um ar de insurreição. A manifestação começou pela
manhã, atravessou a noite e o saldo foi a depredação da estação das barcas, intervenção
militar, seis mortos e uma centena de feridos.
Depois dessa experiência, minha aproximação com os grupos de esquerda aumentou e
comecei a fazer política estudantil de forma intensa, fundando grêmios e editando um
jornalzinho.
Naquela época, a gente passava horas nas esquinas de Niterói falando de revolução e
marxismo. Nossos pontos de encontro eram debaixo das marquises dos cinemas da Rua
Visconde do Rio Branco e dos edifícios da Avenida Amaral Peixoto. Nós não tínhamos
dinheiro para sentar à mesa de bares como fazia a turma da classe média. Éramos
estudantes e trabalhadores assalariados, cheios de contas e vivendo em um país sacudido
pela agitação social e pelos debates ideológicos.
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Nesse ponto Niterói fez história. No ano que antecedeu o golpe militar, tudo o que Carlos
Lacerda proibia e perseguia do outro lado da Baía de Guanabara era permitido em Niterói.
De um lado, era o Estado da Guanabara comandado por um governador de direita e, do
outro, o Estado do Rio, governado por Badger Silveira, eleito em uma coligação de
centro-esquerda. Badger era irmão do Roberto, seu antecessor e que havia morrido em
1961 num acidente de helicóptero.
Foi naquele clima de liberdade que José Pureza, dirigente da Federação dos Lavradores e
Trabalhadores Rurais do Estado do Rio de Janeiro e líder dos sem-terra na Baixada,
montou um grande acampamento na Praça São João Batista, centro de Niterói, onde se
sucediam manifestações a favor da reforma agrária. Na Guanabara, Lacerda proibiu a
realização do Congresso Latino-Americano de Solidariedade a Cuba; no Estado do Rio, o
congresso foi realizado no Sindicato dos Operários Navais e, em seu encerramento, Luis
Carlos Prestes disse em seu discurso que o Brasil caminhava a passos largos em direção
ao socialismo e que os comunistas tinham participação importante no governo. Enquanto
Prestes exalava otimismo, Brizola alertava para a conspiração da direita e conclamava
para a resistência aos golpistas.
E o pior acabou acontecendo. Na madrugada de 31 de março de 1964, as forças do
general Mourão Filho se deslocaram de Juiz de fora em direção ao Rio. Naquele mesmo
dia, à tarde, organizamos uma passeata e saímos em marcha pela Avenida Almirante
Amaral Peixoto gritando palavras de ordem em defesa da democracia e das Reformas de
Base. Chegamos até o prédio da então Assembleia Legislativa e, nas escadarias, o
deputado Affonso Celso Nogueira Monteiro fez um vibrante discurso que alertava a
população para a ameaça de um golpe de estado de caráter fascista e convocava todos
à resistência.
Por volta das sete horas da noite, chegou um contingente da polícia e um agente ordenou
que o deputado parasse de falar. Afonsinho disse que ninguém ia impedir que ele
defendesse a constituição, a legalidade. Aí, o policial puxou o revólver e o deputado
também sacou o seu. Mas nada de grave aconteceu. Entre mortos e feridos, todos se
salvaram ilesos. A polícia somente atirou para o alto, com o objetivo de dispersar a
multidão. A seguir, após esse entrevero inicial, Afonso Celso entrou na Assembleia e,
junto com outros colegas deputados, fechou as pesadas portas de ferro do legislativo e
foi pra uma reunião de emergência da Comissão Executiva do PCB fluminense, usando
uma saída subterrânea existente na época e que ia dar atrás do Liceu Nilo Peçanha.
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Meu bairro amanheceu diferente naquele 1º de abril de 1964. As pessoas passavam
encolhidas, cabisbaixas, em direção ao trabalho. Depois de uma noite mal dormida,
mexendo no botão de um velho rádio Telefunken para lá e para cá, quando tentava ouvir
as rádios do Rio Grande do Sul, a Rádio Havana e a BBC de Londres, eu fiz o meu roteiro
de todos os dias. Saí de casa às sete horas da manhã e apanhei o trem no Ponto de Cem
Réis. Apesar de haver linhas de ônibus e bonde ligando o bairro de Alcântara a Niterói, o
trem era a condução mais em conta para os estudantes pobres e operários que iam
trabalhar nos estaleiros e metalúrgicas.
Aquela foi minha última viagem no trem suburbano. Naquele mesmo dia, eu caí na
clandestinidade. Fui ouvir os proclamas dos atos institucionais e as primeiras cassações
desde o alto da Serra da Bela Joana, no município de São Fidélis. Era tempo de recuo, de
esperar a poeira baixar.
Natal na Favela do Contorno
Para o Sítio da Bela Joana, eu levei apenas um radinho de pilha, que só era possível
sintonizar quando ia para o pico da serra; um livro – O 18 Brumário de Luís Bonaparte
e um revólver Smith & Wesson que papai havia me dado “para em caso de emergência”.
Para completar meu “arsenal”, tio Antônio me deu um facão Corneta, três listras e
comentou estalando o fio do aço com a unha: “Este não falha, ainda mais com a benção
de Deus Pai”. Em seguida meus tios mandaram eu me acomodar no galinheiro que ficava
afastado da casa.
- Até a situação esfriar. Lá você vai estar mais seguro e vai ter tempo de fugir caso os
milicos aparecerem. Qualquer novidade a gente já vai ficar sabendo. - disse tia Rosária,
mulher de fé, evangélica e pentecostal.
O “a gente vai ficar sabendo”, era por conta das percorridas que ela e o tio Antônio
faziam por toda aquela região pregando o Evangelho.
Passei uma semana no sítio. Não aguentei mais ficar afastado de Niterói, da realidade de
suas ruas; curioso pra saber o que estaria acontecendo após o golpe. Lá na Serra da Bela
Joana toda informação que eu recebia provinha da Rádio Globo, a única que eu conseguia
sintonizar e mesmo assim a duras penas.
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Voltei, assim como se estivesse tateando no escuro. Fiquei uns dois dias sem contato com
o pessoal. Parecia que todo mundo havia dado no pé até que encontrei o Nilson Marques
e, aos poucos, fui reatando alguns dos meus contatos. Aquiles Reis, Zelinha Trindade, Ana
Campos, Rodolfo, Jonas, Kadu, Mércia... Eram os secundaristas do Partidão. Com eles eu
havia feito em 1961 o meu primeiro discurso a favor do socialismo. Foi na extinta Favela
do Contorno, que ficava situada no início da atual estrada Niterói - Manilha. Foi no Natal
e eu tinha 18 anos. A gente havia arrecadado alguns brinquedos em nome da União
Fluminense de Estudantes Secundaristas e no final da tarde da véspera de Natal fomos lá
distribuir os presentes. Eu e Nilson Marques fomos escalados para falar. Nilson era o mais
preparado do grupo, pois havia chegado naqueles dias da União Soviética. Falei da
sociedade sem classes, de um mundo de igualdades, do ideal socialista. Eu falava olhando
para aquela comunidade miserável, que tinha os estaleiros ao lado e a Baía de Guanabara
ao fundo.
A greve secundarista de março de 64
Assim que eu cheguei à Niterói vindo do sítio do tio Antônio, a primeira tarefa que recebi
foi tirar a biblioteca de Lindolfo Silva do apartamento que ele ocupava e levá-la para
outro local. Lindolfo Silva era o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura e seu apartamento ficava no primeiro andar de um prediozinho situado
no Campo de São Bento. Eu e Rodolfo acondicionamos os livros em caixas de papelão e
os levamos para baixo. Levei os livros e a estante para a casa de meus pais.
Mais tarde, a repressão “baixou” lá e carregou quase tudo.
Naqueles primeiros meses após o golpe, a gente queria entender que merda era aquilo,
que de repente havia acabado com nosso passeio gostoso em direção ao socialismo. A
primeira reação que tivemos foi pôr a culpa no Comitê Central e na linha conciliadora
adotada no Quinto Congresso.
Com todo aquele furacão acontecendo, ainda por cima, eu não tinha onde estudar. Havia
sido expulso sem maiores delongas do Colégio Plínio Leite. Os diretores, tanto o velho
como seu filho me odiavam. No início de março, eu, Aquiles, Iná e Zélinha lideramos uma
greve que paralisou todas as escolas particulares de Niterói. E olha que havia dezenas. A
greve era em protesto pelo aumento das mensalidades. O mais difícil foi exatamente
onde eu estudava, o poderoso Plínio Leite, da “Rua da Praia”. Osso duro de roer. Difícil,
mas não impossível. Montamos um piquete e com o apoio de Ozéas, um taxista que fazia
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ponto nas Barcas, fizemos um baita furdunço em frente àquele gigante do ensino
privado. Durante todo o dia, o táxi de Ozéas, com duas cornetas instaladas no capô, ficou
estacionado na entrada do colégio e a gente gritava: “ensino não é banana, escola não é
quitanda”. Aquilo aconteceu no dia 13 de março.
Enquanto a gente fechava os colégios particulares de Niterói e fazia piquete na porta do
Plínio Leite, clamando pela socialização do ensino, do outro lado da Baía de Guanabara,
era realizado o famoso comício da Central do Brasil e os discursos inflamados de Arraes,
Prestes, Brizola e Jango eram transmitidos pela aparelhagem de som instalada em cima
do táxi. A gente puxava o som desde o rádio do Simca Chambord.
Foi pelo rádio do Simca que eu soube da morte de Che Guevara.
Naquele mesmo ano de 1967, saí definitivamente de Niterói. Só vim saber do Ozéas dois
anos depois, quando ele respondeu ao inquérito do “8 antigo” ( MR-8 de Niterói).
Minha doce trotskista
Já no pós-golpe, fora do Plínio Leite por determinação da diretoria, fui terminar o clássico
no Colégio Batista. Nesta ocasião, eu trabalhava meio “clandeca” em uma transportadora
em Santo Cristo e morava em uma pensão no Ingá. Todos os dias, eram duas viagens de
ônibus e mais a travessia de barca. Não sei onde arrumava tempo para as tarefas do
Partido. Eu era Secretário de Agitação e Propaganda do Comitê Secundarista de Niterói.
Então, era um tal de organizar pichações contra a ditadura, articular os jornais murais e
mais aqueles mimeografados nas escolas e sei lá quantas outras tarefas. Mesmo assim,
sobrava tempo para as discussões internas, da busca de um caminho para a revolução. A
gente andava descontente com a análise que o Comitê Central fazia sobre o golpe militar
e de sua proposta de uma ampla frente política para derrotar a ditadura. Nós, do Comitê
Secundarista, cobrávamos uma autocrítica daqueles que se iludiram e ludibriaram todos
nós ao dizer que não havia possibilidade de um golpe e se ele viesse seria desbaratado
pelo dispositivo militar do general Assis Brasil, chefe do gabinete militar do presidente
João Goulart.
As bases e direções intermediárias do Partidão no Estado do Rio cobravam uma preparação
para ações armadas, que seriam conjugadas com ações de massa. As discussões eram
acirradas e o descontentamento não se circunscrevia aos estudantes. Com o intuito de
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amainar as bases fluminenses, o Comitê Central enviou Apolônio de Carvalho para
Niterói. Com a fama de ex-combatente da guerra civil espanhola e da resistência francesa,
o mitológico dirigente do Partido chegou para implantar o que ele chamava de “trabalho
especial”. Boa praça, acessível e culto, o Lima (esse era o nome de guerra do Apolônio)
começou a nos ensinar táticas e estratégias militares. Num quadro-negro, ele desenhava
os soldados em suas posições no campo de batalha e falava de trincheiras, infantaria,
cavalaria e outras teorias ensinadas na Academia Militar das Agulhas Negras. Caramba!
A gente não queria aprender aquilo. Nós queríamos partir logo para a fabricação de
bombas molotov e de minas. Queríamos lidar com dinamite e aprender a atirar. Apolônio,
porém, continuava com suas teorias militares naquilo que o Comitê Central chamava de
“trabalho especial” ou “Tereza”, segundo o vocabulário de Apolônio. O tarimbado Lima
costumava dar nome de mulher para cada trabalho que ele desenvolvia.
Naquele primeiro semestre de 64, eu estreitei meus contatos com os trotskistas do PORT
- Partido Operário Revolucionário dos Trabalhadores. Eles seguiam as teorias de J.
Posadas, codinome do argentino Homero Cristalli Frasnelli. Em Niterói, resumiam-se a
um grupo pequeno. A gente se encontrava sob a marquise do edifício do antigo Banco
Predial. Meu contato mais frequente era com Helena, uma loira de cabelos encaracolados
e olhos claros. Parecia Mae West, aquela atriz dos velhos filmes em preto e branco que
mexeu com o imaginário e a libido de muita gente. Pois bem, esta beleza de trotskista
mexeu fundo com meus sentimentos e quase me recrutou para o PORT. E olha que ali
mesmo, em 1962, debaixo daquela mesma marquise eu havia rejeitado um convite de
Pedro Pomar e Henrique Oest para entrar no recém fundado PC do B.
Helena morava nas proximidades da estação rodoviária de Niterói e seu pai era oficial do
Exército.
- Um profissional com ideias nacionalistas - dizia ela, que já percebia minha atração por
sua beleza e capacidade intelectual. Naquela altura do campeonato, eu já conhecia as
teses e comentários de J. Posadas de cor e salteado. Era, por assim dizer, um experto em
jotaposadismo.
Num de nossos encontros, avancei o sinal e dei uma rasteira no temor reverencial que eu
tinha daquele monumento que defendia com ardor a classe operária e pregava a
revolução mundial. Tentei um contato físico junto a uma das imensas colunas que
sustentam a marquise do Banco Predial em toda sua largura e comprimento. “Não”, disse
minha doce trotskista enquanto encostava o indicador no meu peito.
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- Nesta etapa da luta, todas nossas energias devem estar voltadas para o combate à
burguesia. Não devemos desperdiçá-las com este negócio de sexo. Assim ensina o
companheiro Posadas.
Esta foi a última vez em que me encontrei com Helena. Naquele ano de 1966 e no
seguinte, andei como um caixeiro viajante, organizando e participando de ene reuniões.
Eram reuniões intermináveis, marcadas por duros enfrentamentos. A gente precisava
tomar um caminho, a ditadura estava-se consolidando

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